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sábado, 20 de abril de 2024

O Xadrez Social

 

The Chess Player, Corneliu Baba, 1948



De um lado as Forças do Progresso: comunistas, socialistas, trabalhistas, social-democratas, anarquistas, ecologistas, ateus, agnósticos, cidadãos de todos os credos e cores engajados na defesa dos interesses dos menos favorecidos, na luta contra a desigualdade, a opressão, a discriminação, na afirmação prática da regra de ouro: “não faças ao outro aquilo que não desejas para ti”…

Por outro lado, as Forças da Reação, apoiadas pelo grosso das forças armadas, profissionais da violência, milícias, judiciário, ministério público, mídia oligopolizada partidária e dependente, banqueiros, capitalistas, seitas apocalípticas, oportunistas de todos os quilates, uma pancada de gente fodida que dissemina desinformação, mentiras, teorias da conspiração paranoica e que enaltece a hegemonia de um estado fundamentalista nos costumes, liberal na economia e totalitário na política, sob a sombra de Ronald Reagan, Margareth Thatcher, Pinochet, Darth Vader e a Estrela da Morte…

E, no meio disso tudo, o povo.

E o que deseja o povo? Nada demais… Casa, comida, carro, computador, celular, televisão de plasma, encher o carrinho de supermercado uma vez por mês, viajar de avião, dinheirinho no banco para emergências, saúde e educação de qualidade, dignidade, cidadania, respeito, segurança, internet de alta velocidade a preço camarada…O povo quer viver o mais normal possível, tal qual qualquer classe média que se preze.

Afinal, não foi pra isto que, lá atrás, combinamos que a Justiça é cega, igual para todos, que o Estado é laico e que o poder emana do povo e em seu nome será exercido?


 

sábado, 6 de abril de 2024

Acordei doido para mudar o país

 

Seated beardeb man, Roger de La Fresnaye, 1910


E se votássemos em partidos e não em pessoas… E se a cada eleição tivéssemos que votar sim ou não em questões do tipo: voto em lista, cotas (educacionais, partidárias, culturais…); liberação da maconha; aborto; taxação de grandes fortunas; imposto progressivo; educação pública universal e gratuita para todos e período integral de ensino; pagamento de impostos pelas igrejas; redução de partidos; reparação histórica aos negros e povos originários; transporte público gratuito; transparência das ações governamentais; desmilitarização das polícias; controle público do judiciário; profissionalização das forças armadas; fim do serviço militar obrigatório; serviço social facultativo; internet livre para todos; parlamento unicameral com representação proporcional à votação alcançada por partido em cada estado para discutir orçamento e questões de Estado; extinção de privilégios políticos; reforma agrária; renda mínima; salário-mínimo real compatível com o custo de vida; propriedade privada…?

Mas, após uma xícara de café, irrompeu pela casa adentro, com sua voz estridente, a minha manjada e rotineira sanidade a me avisar que estou atrasado, que a geladeira não se enche sozinha e do mesmo jeito que não existe almoço grátis, dinheiro não brota em árvore…

Num redemoinho de emoções, saio ao encontro do trânsito caótico cotidiano e, a oscilar entre a raiva e a melancolia, aguardo que um milagre venha me salvar do mundo e de mim mesmo.

Nenhum coach apareceu em meu socorro, o universo mais uma vez não conspirou a meu favor, não descobri o segredo de coisa nenhuma, já atentei contra minha vida umas trocentas vezes e eis que chego ao trabalho disposto a pedir demissão e dar um tapa na cara no chefe…

Mais um dia daqueles… arre! Passo o tempo sonhando em ganhar na loteria e me mandar para uma ilha deserta. Mas o lar me espera e após um miojo babado, bate aquele soninho, e sem alternativa, me lanço aos braços da minha doideira e durmo que nem um anjo… louco.


 

sábado, 23 de março de 2024

Crônicas Pandêmicas 5

 

Survival of the Fattest, Jens Galschiot, 2002


A turma que subiu ao pódio da canalhice, por obra e graça da mesquinharia nacional, gastou saliva fedorenta propagando a existência de uma suposta caixa-preta do BNDES… Que era preciso abri-la e coisa e tal… Fizeram disto um cavalo de batalha e acabaram por contatar dois escritórios de investigadores internacionais para realizarem uma devassa em vários contratos do banco.

E o que encontraram? Nada, nadica de nada. Todos os contratos existentes foram firmados dentro da mais completa lisura.

E aí vem a bomba: Os sherlocks, após exaustivas pesquisas, apurações, raciocínios dedutivos, fala daqui, ouvi dali, confere isto, tica aquilo… produziram um relatório de 08 (OITO, eu disse oito, o-i-t-o, 5 mais 3, 6 mais 2, 4 mais 4, 7 mais 1… sacaram?) singelas páginas onde afirmam, em letras garrafais, não existir nenhum esqueleto dentro da caixa denominada preta (olha o racismo estrutural aí, gente) do BNDES.

Todo este vira-e-mexe custou ao nosso bolso nada mais nada menos que a ninharia de 48 milhões de reais – fatura que o Tribunal de Contas da União não consegue explicar nem com reza braba.

O Brasil, eternamente tutelado por sujeitos fantasiados de azeitona, elegeu uma camarilha de lunáticos, dementes, esquizofrênicos e psicopatas… E agora, sem choro nem vela, teve que morrer em 48 milhões de reais por 8 (OITO) páginas de papel sulfite tamanho A4 (que certamente se encontram esquecidas nalguma gaveta palaciana, se não foram jogadas em alguma lixeira).

Só no país tropical bonito por natureza é possível que gente desqualificada, desmoralizada e desacreditada torre dinheiro público para provar que são, de fato, desqualificados, desmoralizados e desacreditados.

Os nossos direitistas, covardes cooptados pela extrema, são mesmo uma piada: não fazem ideia de onde vivem e continuam com a cantilena propagada pelos verdes-azeitonas que se acham donos da nossa República, de que o Brasil jamais será vermelho.

Gente, este país nasceu escarlate… O nome que acabou na certidão de nascimento deste país continental onde moramos, trabalhamos, nutrimos esperanças e encontramos a cada esquina um fascista é Brasil, logismo que vem de brasa, vermelho… Vermelho tal qual a madeira que, nos primórdios da colonização, encheu o rabo de dinheiro dos ancestrais dessa gente que hoje se arrepia diante da cor do sangue derramado diuturnamente pra sustentar seus privilégios, prepotência, ganância e ignorância.

E chegou o carnaval… A nação brasileira se prepara para pular mais uma vez na chapa quente.

Antes que a polícia barbarize a bagaça, aguardo uma quarta-feira de cinzas a um minuto do fim do mundo.

Mas eis que o governo central, tomado de milicos até o talo, segue agitando o “f…-se” como estratégia política, certo de que conseguirá armar seus jagunços a tempo de tomar de assalto o poder, “dentro das quatro linhas da constituição”, é claro.

Enquanto isto, a grande mídia — comprada de manhã e vendida à tardinha, continua a anestesiar o povão com suas histórias fantásticas saídas dos miolos carcomidos de sujeitos cínicos muito bem pagos.

Mas, relaxa: é carnaval. O problema é que a nossa fantasia, além de esfarrapada, não inspira mais graça nenhuma.

Então, o negócio é encher a lata, azarar deus e todo mundo, reclamar dos trombadinhas e fingir diversão.

Se nem aqueles que faturam alto com esse estado de coisa, acreditam mais, porque continuamos a nos arrastar nessa avenida esburacada?

Talvez seja verdade que “atrás do trio elétrico só não vai quem já morreu”, ou que “a alegria é a prova dos nove”… Mas a minha questão é: estamos deveras vivos?

Proponho uma reflexão: se esta nossa melancolia embalada de traumas e frustrações é de fato um componente alegórico do nosso samba, solicito a generosidade de considerarem a possibilidade de que, embora humanos na forma, no conteúdo não passamos de um amontoado de confete, serpentina e camisinha furada no meio de uma praça encharcada de mijo, lama, suor e lágrimas, rezando para que, algum dia, um alien se apresente para trocar umas ideias.


 

sábado, 2 de março de 2024

Homens da minha vida

 

Estudo do Homem, Anita Malfatti, 1915


Minha primeira paixão? Pateta (o amigo do Mickey). Depois vieram Cavaleiro Negro, Zorro, Jerry Lewis, Elvis Presley… Cinema e Quadrinhos, quadrinhos e cinema… paixões cultivadas até…

Um dia li um livro do Monteiro Lobato (não lembro o título), e uma passagem me chamou atenção: um aparelho nos fazia viajar à pré história da humanidade. Explodiu minha cabeça… Mal sabia que adiante conheceria a televisão.

Me apaixonei pelo meu professor de português (na época do ginásio), que me disse o porquê participar de passeatas e mais adiante o encontrei no Robin Williams da Sociedade dos Poetas Mortos.

Clint Eastwood foi o durão mais amável que passou pela minha vida (muito mais depois de Os Imperdoáveis). Também me cativaram, pelo charme e doçura da masculinidade, Marcello Mastroianni, Marlon Brando, Al Pacino, Robert De Niro…

(Porque será que nunca me apaixonei pelo Superman, Batman ou qualquer outro super-herói?)

Ah, Junito Brandão… professor de literatura grega… sua escrita me fez comprar a coleção inteira dos seus livros e me deliciei com suas histórias assombrosamente vibrantes de deuses e semideuses mitológicos.

Um professor num colégio cristão destinado a formar boas esposas, Joseph Campbell, me desvendou As Máscaras de Deus e percebi a mecânica que movimenta esta criação ardilosamente humana.

E Isaac Asimov? Ah, este me fez entender, com A Última Pergunta, que amar é sobretudo conhecer.

Borges e suas Ficções foi amor à primeira linha; As Cidades Invisíveis fizeram tanto carinho na minha alma que ainda hoje penso em sair de porta em porta a perguntar se têm um instante para ouvirem a palavra do Ítalo Calvino.

Reservo um cantinho secreto do meu ser exclusivo para o Pessoa, quase um heterônimo de mim mesmo.

Por obrigação, li Vidas Secas, São Bernardo… E me foi impossível não ceder à paixão diante de Graciliano Ramos que, num passe de mágica, me levou aos braços de Machado de Assis, onde me aninho, certo de estar, senão na melhor companhia, mas na presença de alguém que, nos tempos atuais, em meio a tantos implacáveis fuderosos fodásticos, nos apresenta a vida real - a verdadeira, bela e contraditória experiência humana. 

 

sexta-feira, 29 de dezembro de 2023

Tenho convicção mas não posso provar que…

 

El lobo sí se comió de verdad a Caperucita, 
Julio Galán, 1993



Nasce verruga no dedo ao apontarmos uma estrela.

Um fio de linha vermelha umedecido com saliva e colocado na testa cura soluço.

Comentarista de futebol é uma atividade vital.

Palavra de juiz é lei.

Todos são iguais perante a justiça.

Deus existe.

A religião torna as pessoas melhores.

A morte é apenas uma passagem.

A polícia nos serve e protege.

Herança é mérito.

O trabalho enobrece.

A economia é uma ciência exata.

O capitalismo é o melhor dos mundos.


 

sábado, 18 de novembro de 2023

Mural das Indiscrições XI

 

Forms in space, Fernand Léger, 1950



– A vida é boa, mas quando a gente morre sente saudade de quase nada.


– As cidades são democraticamente desagradáveis.


– Existem três brasis: o capitalista, o socialista e o degradado.


– A falha moral do brasileiro é que ele é solidário.


– Deus tem dado o frio conforme o delator.


– Todo brucutu tem autoestima elevada.


– O capeta só possui quem nele acredita.


– Uma mentira é consequência de uma afirmação anterior.


– O tanto que sei é nada diante daquilo que não sei.


– A lei só é boa quando aplicada ao outro.


– Abundam por aí sujeitos cujo propósito é comer, fazer m… e peidar pela boca.


– Crentes anunciam a cura gay e a ciência nos deve a cura imbecil.


– Quando a ciência deixou a hipótese deus para lá, logo se criou a mão invisível do mercado.


– O apocalipse já aconteceu, estamos na fase onde a natureza se vinga.



sábado, 28 de outubro de 2023

pequena crônica

 

For the love potion, Mikhail Nesterov, 1888


seja de boa, conte histórias

evite frases de efeito

discorde concordando

pratique um instrumento

a vida é um moinho, tu és semente

(já ouvi dizer que é inspirador viver num jardim de espinhos)

seus segredos são seus, os segredos dela são dela

se fores sozinho a maracangalha, melhor que tragas um oceano

se entregue, morra, mas ressuscite na hora H e se nada disso der certo, a culpa é dos poetas...



sábado, 8 de abril de 2023

falares

 

Quem falará por nós, Sidney Amaral, 2014



- existe gente feliz nos cafundós do Havaí

 

- busco liberdade das dores que me enxotam

 

- conquisto diariamente o direito de viver um último instante

 

- o amanhã, sei lá, talvez me encontre esquecido

 

- assim que puder instalarei satélites refletores da luz solar, em volta da terra, para eliminar a noite

 

- todo dia me preparo para tourear a besta e na volta adquirir uma nova ilusão



sábado, 11 de fevereiro de 2023

Crônicas Pandêmicas 3

 

Proclamação da República, Benedito Calixto, 1893


A Proclamação da República foi um movimento militar patético, um golpe frouxo dado em cima de Dom Pedro II, figura erudita, triste, que adorava fotografia e tinha grande apreço pela Ciência e Tecnologia (manteve extensa correspondência com alguns expoentes científicos do seu tempo).

Infelizmente, apesar de contar com apoio popular, perdeu o gosto pela pompa e circunstância da coroa e acabou por decidir largar mão de tudo e se mandar, pobre, para o exílio.

O regime instaurado, só fez acumular fracassos, tornando-se gerador de sucessivos governos fracos e incompetentes para tocar, por exemplo, o projeto de Brasil saído da cabeça do velho imperador que soube manter a estabilidade política e a liberdade de expressão por 58 longos anos.

Longe de mim, querer a volta da Monarquia, ainda mais olhando para os atuais descendentes reais, uma turma de carolas que não merecem sequer cheirar um peido do Dom Pedro (inventor, segundo a lenda, do maior passatempo brasileiro, verdadeira homenagem à astúcia e a esperança brasileiras: o nosso traquinas jogo do bicho).

Taí, entre as gangues milicianas atuais e os velhos capos da contravenção, sem dúvida nenhuma sou mais os presidentes eméticos das escolas de samba – muito mais honestos, coerentes, insubmissos e perfeitamente engajados com as coisas, os costumes das gentes brasileiras, nacionalistas genuínos, sempre desconfiados com relação a tudo que cheire ou venha do estrangeiro. Brizola estava certo.


 

sábado, 17 de setembro de 2022

Mural das Indiscrições X

 

Office in a Small Sity, Edward Hopper, 1953


Constatação: O tanto que sei é quase nada diante daquilo que não sei.

 

Estação Vida: Existem aqueles que se despedem e a gente chora antes mesmo da partida. E existem aqueles que insistem em permanecer mesmo quando a gente clama que partam.


Convite: Em vez de frases motivacionais ou mandamentos religiosos, pela manhã, que tal apenas um sincero bom dia!


Desproporção: Um professor está para 30 alunos, assim como 30 assessores estão para um deputado.


Perguntar não ofende: Deus acredita em Deus? Se sim, existe outro Deus; se não, Deus é ateu.


Impossibilidade: Alguém já viu ou soube de algum ateu possuído pelo capeta?


Entreouvidos: O mercado, ah, o mercado… O mercado é um cachorro latindo por um osso.


Quem avisa, amigo é: Tudo que pode ser imaginado existe. Portanto, muito cuidado com o que pensas.


Regra: De um modo geral, nossas cidades são todas democraticamente desagradáveis.


Licença Poética: Bandeira Nacional: Depois da apropriação indébita, nem pra pano de chão…


 

sábado, 27 de agosto de 2022

Conversa no zap

 

Nome de Deus, Hafiz Osman, 1693


       Uma conhecida me procura pra falar da morte de uma amiga. Surpreso: digo que sinto, que lamento, que a falecida agora é uma estrelinha brilhando lá no céu e pronto. Ficaria por isso mesmo se eu não engatasse uma conversa embalado pela lembrança dos seus olhos verdes gritantes e um sorriso de covinhas lindamente provocantes.

          Falo da beleza da nossa velha, santa e de sonhos mil, nossa linda mãe Bahia. E me vem à lembrança a gostosura da comida – comida de santo, autorizada pelos Orixás… Vixe, causei um arrepio. A moça, chocada, diz que obedece a um único deus.

          Metido a besta, penso com meus botões (desejoso de imitar algum poeta) “oh, deus”! Insisto: “oh, deus, tu casmurro, cheio de mungangas, ciumento e maltratador”… E teclo: - A Bahia é mais, a Bahia está longe dos bloqueios, dos preconceitos, de qualquer necessidade esquizofrênica de ser desamado?

        Pensei no deus que habita todos as coisas (como querem alguns filósofos) e meio que me peguei a orar: “oh deus que pretendes ser meu, deus cuja crença sinto que é até possível se acaso não praticasses amor desigual, fala comigo, se sois de fato paz e amor entre os viventes...”.

          E lembro que a melhor coisa que me aconteceu neste ano foi ver e ouvir Gil, em família (filhos, netos e bisnetos), mostrar, no alto dos seus 80 anos, a linda árvore que é no paraíso que imaginamos.

         Sinto que a moça, embora diga legal e amo, não ouve a si mesma nem aos meus pensamentos. Mas também não a escuto e repito: “ah, deus, bonito foi teu sinal, então por que ignoras? Que a Bahia é mais”!

          Disse isto ancorado no fato de ter nascido em Ilhéus, com um pé na Igreja Matriz de São Jorge e outro no terreiro de Nanã, minha madrinha (em cuja casa, através de um buraco de fechadura brechava Iemanjá pentear os cabelos sentada à beira da fonte que havia no quintal sem que isto me impedisse de vestir a batina de coroinha e ajudar na celebração da missa e um dia compreender que o único inferno que pode subsistir na nossa alma é ter causado mal, machucado alguém: o remorso é uma estaca eternamente enfiada em nosso coração).

        Mas não quis acirrar mais ainda o conflito. E com a alma tão longe, emendei: “nunca me doeu, e nem doí, o fato de amar a comida, o clima, o jeito, o cheiro, o dengo… Porque sou a Bahia que trago na memória (ouviu deus!). E, finalmente, pude fazer eco ao poeta: Triste Bahia, oh quão dessemelhante estás…

         A moça se desculpa e diz que vai voltar ao seu dia a dia, se despede não sem antes me dar oportunidade de mencionar, lembrando Caetano: “Sou uma bandeira branca enfiada num pau forte/ trago no peito a estrela do norte”. Ela parece rir. Eu, solitário, clamo: “oh, deus que não me abandonaste, por que tanto me maltratas”? 



sábado, 11 de junho de 2022

Crônicas Pandêmicas 2

 

Eleven A.M., Edward Hopper, 1926



5. Em época de avanço da extrema-direita e do coronavírus, a série Hunters coloca uma pulga gigante atrás da nossa orelha. Somos levados ao centro da luta contra nazistas que foram cooptados pelo governo norte-americano, por ocasião do término da II Guerra Mundial e assumidos como “armas” na luta contra o comunismo. Essa multidão de assassinos acaba por assumir postos chaves na “terra dos livres e o lar dos bravos” e se dedica ao seu esporte predileto: preparar o advento do 4º Reich.

Um inocente xarope de milho, produzido por uma inocente empresa, fará todo o trabalho: matar metade da população dos EUA e tomar o poder na maior potência mundial. É aí que surge um grupo, formado por judeus, uma freira, um ninja japonês e uma negra que, à custa de muitos tropeços e feridas, consegue anular a meta da diabólica conspiração.

Porém, no último episódio nos invade uma incômoda sensação, que acaba por colocar a série na categoria terror. Assistimos os minutos finais, com a impressão de que, com certeza, não estamos a salvo, nem mesmo entre os nossos (ou, em meio àqueles que lutam ao nosso lado). A paranoia toma conta dos nossos corpos.

Daí é de bom alvitre ficar atento com a mão que nos alimenta e/ou nos cumprimenta, pois é possível esteja rolando um virusinho nas relações ditas afetivas, amistosas e cordiais. Mas, que não se perca a esperança: ainda existem avós e netos — os últimos confiáveis, segundo os roteiristas. Por isto, fiquem atentos à história da própria família e, sobretudo, coloquem-se em perspectiva na luta da civilização contra a barbárie, afinal é fatal ser pego com as calças nas mãos na hora que a jiripoca piar.

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6. Somos nossas circunstâncias. E aí, meus povos e minhas povas!… lembram do lero-lero do Edu Lobo: “gosto mesmo de fulana mas sicrana é quem me quer”. Pois é, criticar o povo brasileiro é fácil, quero ver viver com salário-mínimo, sub ou desempregado, sem-terra, sem teto, miserável… e com a mídia te manipulando, a milícia te acossando, a polícia te matando, o agronegócio te lascando, os políticos te roubando… Somos tão massacrados que temos vergonha de mostrar a cara (como desejava o Cazuza). Mas, vai vendo, uma hora a gente pega a preá. Uma hora a gente sacode a poeira, dá a volta por cima e vamos jogar boliche com cabeças coroadas (conforme desejo de um velho amigo) e partir pro banquete. Por mim, bastaria aplicar a lei (e olha que temos carradas), simples assim. Enquanto isto, salve Bacurau, salve Petra, salve Mangueira e todos os tantos carnavais…

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7. O Luiz Felipe Pondé, dublê de filósofo e mungangueiro profissional, bem que tentou vender a alma ao diabo, mas o capeta, curto e grosso, recusou. Eduardo Bolsonaro decretou que não se precisa ler livros para ser conservador (entenda-se extrema direita), mas simplesmente dar audiência ao Alerta Nacional do Sikêra Júnior — um verdadeiro mestre na arte de cancerizar geral e ainda sair com um troco.



sábado, 4 de junho de 2022

Crônicas Pandêmicas

 

Universes, Yosef Joseph Yaakov Dadoune, 2003

1. Quando o fascismo, associado aos liberalistas econômicos e o pentecostalismo de resultado, conseguiram estabelecer velocidade cruzeiro na tarefa de dominar o mundo eis que, no dia 31 de dezembro de 2019, a Organização Mundial da Saúde (OMS) foi alertada sobre vários casos de pneumonia na cidade de Wuhan, província de Hubei, na República Popular da China.

Uma semana depois, em 7 de janeiro de 2020 as autoridades chinesas confirmaram que haviam identificado um novo tipo de coronavírus, o SARS-CoV-2, transmissível por morcegos, capaz de causar a morte de seres humanos. Segundo uma estimativa do jornal The Economist, seria possível ocorrer entre 7 a 13 milhões de óbitos, algo comparável às mortes durante a 1ª Guerra Mundial.

Dois anos após o início da pandemia, entre vacinas, vacilos, cuidados e doses brabas de negacionismo, um novo normal tornou-se uma perspectiva remota. O mundo, como conhecíamos, desde aquele dia já era. Restaram apenas algoritmos sacanas e a uberização da vida.

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2. A guerra híbrida segue em curso e se desdobra: temos aí a guerra comercial entre os EUA e a China. Em jogo, o domínio da tecnologia 5G pelo mundo afora além da supremacia militar na Ásia e no Oceano Pacifico.

A China é uma superpotência, inegavelmente. Em 60 anos, saiu de uma realidade medieval e agrícola para alcançar o patamar de potência industrial, comercial e científica. Os EUA, guardiões do livre mercado, não aguentam conviver com este concorrente à altura.

Os valentões do velho oeste, e seus capangas, passaram então a fomentar a xenofobia ao apregoarem que o mal estar causado por um vírus que produz pneumonia e leva à morte os indivíduos infectados é obra da genialidade chinesa em busca do domínio total do mundo.

Em vez de solidariedade, o governo Trump declarou que nada faria contra a pandemia porque os chineses já estariam fazendo o que é preciso — um modo de dizer que não iria mover uma palha para evitar que mais e mais norte-americanos e cidadãos pelo mundo afora morram à míngua, o que deveras fez. Enquanto isto, a China construía um hospital para 1000 leitos em 48 horas. 

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3. Salve-se quem puder. Com o coronavírus a recessão só tende a piorar. A produção está sob o efeito da lei da gravidade: cai em direção a lugar nenhum. Mas não perca a esperança, cidadã. Os preços continuarão a subir. Afinal, no capitalismo é assim: não existe solidariedade. É lucro acima e apesar de tudo. Em tempos pandêmicos, questão de três meses, o valor do litro do álcool gel aumentou em mais de 700%. Tabelar os preços, ou manter vigilância contra aumentos abusivos, seria uma medida de grande impacto e sinalizaria um cuidado com as pessoas, pois não? Errado. Sinto muito, mas a senhora não sabe das coisas, não entende nada de economia. Creia, como pensa o desgoverno que nos assola, na capacidade do mercado de se auto regular e aguarde a liberação da primeira parcela do 13º dos aposentados — medida supimpa para evitar a depressão que se descortina no horizonte.

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4. - O paraíso anunciado pela direita tem um céu de mentira.

- E o paraíso da esquerda, por acaso é verdadeiro?

- Para a esquerda não existe paraíso. 




sábado, 14 de maio de 2022

paradoxos nacionais: um roteiro da iniquidade

Portrait of Arman Frantsevich Aziber and his son
Pavel Filonov, 1915


1. Uma governadora, diante de uma crise monstro no sistema penitenciário do seu estado, lança um edital para compra de lagosta e champanhe para o cerimonial do palácio no mesmo dia em que impede a entrada da comissão de direitos humanos no presídio onde a degola corre solta.

 

2. Um secretário de governo de um importante estado brasileiro, acusado de receber propina de empresas que atuavam na construção e manutenção do metrô, permanece no cargo a pedido do governador que precisa, politicamente, de uma aceleração dos projetos.


3. Um dos donos de uma famosa rede de televisão, cuja fortuna é estimada em 8 bilhões de dólares, disse publicamente, em editorial no jornal do seu grupo, que é preciso colocar “travas” nos reajustes do salário-mínimo por considerá-lo inflacionário.


4. Um juiz da suprema corte, acusado de manter capangas na sua fazenda e de custear com verbas públicas cursos para protegidos na faculdade onde é sócio proprietário, concede dois habeas corpus e um guarda-chuva de proteção jurídica a um banqueiro, condenado em primeira instância, sob alegação de que o processo possui vicio de origem.


5. Político, flagrado em relações íntimas com um chefe de crime organizado, desfruta no estrangeiro, nas festas de final de ano, das delícias que o dinheiro pode proporcionar, livre, leve e solto e muito bem acompanhado.


6. Um dos presidentes do senado faz várias viagens em avião da força aérea, para fazer implante capilar. Descoberto, alega ignorância das normas (pela enésima vez).


7. No mesmo presídio em que sentenciados ao regime semiaberto cumprem pena no fechado, um tetraplégico amarga condenação por tráfico de drogas, por que a polícia encontrou um baseado no seu quarto.


8. Ao fazer um balanço das atividades do conselho nacional de justiça, o presidente da entidade foi enfático: “Cabe a nós, juízes, advogados, promotores, professores e estudantes, manter o empenho constante para tornar o Judiciário mais célere e fazer com que o acesso à Justiça seja, sobretudo, justo e seguro”. No que foi ovacionado pelos presentes pelas belas e sábias palavras.


9. Uma empresa acusada de promover pirâmide financeira, cujos bens dos sócios se encontram indisponíveis, continua patrocinando time carioca.


10. Numa padaria, um desembargador xinga policiais de cagões por se recusarem a prender um cliente que defendeu um garçom que, ao desconhecer com quem estava falando, não lhe obsequiou atendimento preferencial, cerimonioso e servil.


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sábado, 30 de outubro de 2021

Um trem do outro mundo

 

Guardians of the Time, Manfred Kielnhofer, 2007


Algoritmos são de direita, de centro ou de esquerda? Existe ideologia nestas construções lógicas transformadas em tomadores de decisões nos tempos atuais?

Algoritmos: ferramentas criadas para dispensar trabalhadores, prescindir de mão de obra, evitar a burocracia, facilitar o contato direto entre desejo e mercadoria, além de terceirizar e precarizar as relações. Fonte de sucesso de aplicativos, usado e abusado pelas grandes corporações digitais no direcionamento do trafego da procura por coisas e mercadorias.

Vivemos a era da interatividade instantânea. Nunca desejo e mercadoria estiveram tão próximos. Os algoritmos criaram uma relação de conveniência que facilita a vida do consumidor ao mesmo tempo que proporcionam altos lucros a serem distribuídos entre acionistas e bonificar gostosamente uma malta de executivos anualmente.

Este é o toque de midas da indústria da informação: transformar vontade em dinheiro. Isto faz do algoritmo o grande cafetão das relações no mundo virtual. E a ideologia do cafetão é sua amoralidade, não estar nem aí para qualquer princípio ou valor que não seja sua própria satisfação.

Ao privilegiar a relação desejo satisfação, os criadores e implementadores de algoritmos não têm levado em conta aspectos éticos, sensíveis, aspectos humanos… Mas aí, diriam os pacientes, num dia de excessivo otimismo: Ora, isto é algo novo, em vias de teste, vai chegar uma hora em que tudo melhorará e teremos uma sociedade perfeitamente integrada e sem intermediários que não a lógica e a exata matemática.

Sou um sujeito inquieto, então convido vocês a fazerem comigo uma simulação: digamos que alguém deseja destruir a diversidade humana e colocar no lugar meia dúzia de troços ditados por uma entidade sobrenatural. Como se comporta o algoritmo? Não dá a mínima para os aspectos legais ou ilegais envolvidos na satisfação deste desejo. Em vez de mandar o sujeito ir para a ponte que o partiu simplesmente irá colocá-lo em contato com outros dementes da mesma laia e dar uma banana para o resto porque o que vale é saber que a ferramenta funciona e de que o recado chega redondo ao devido destinatário. E com isto nos abre as portas do hospício, onde todos os doentes mentais, nos mais variados graus de insanidade, conseguem encontrar guarida e, ainda por cima, respaldo jurídico sob a alegação de que a Democracia garante a liberdade de expressão dos facínoras.

Querem outra? Cadastrei meu apartamento em um desses aplicativos de compra e venda de imóveis. Botei lá um valor que considero justo – levando em conta o local, os arredores e as facilidades existentes no entorno… O que aconteceu? Não passa dia sem que o danadinho do algoritmo me envie um relatório onde, com base em exaustivas pesquisas (o algoritmo trabalha dia e noite, sete dias por semana, 24 horas por dia) ele informa que, para melhor me posicionar diante da concorrência, devo abaixar o preço. Pelo raciocínio lógico do mequetrefe chegará dia em que terei que pagar para alguém comprar o imóvel.

É ou não um trem do outro mundo este tal algoritmo. No fundo ele conta mesmo é com o nosso desespero. Isto me lembra o ditado: só existe malandro porque todo dia nasce um otário.

sábado, 16 de outubro de 2021

Pandemia Randomizada II

 

Bottle of Vieux Marc, Glass and Newspaper, Pablo Picasso, 1913


Dia 954

Não para de crescer o movimento dos descontentes com o rumo das coisas. Os mesmos interesses econômicos e comerciais que guindaram o excrementosíssimo à cadeira presidencial, são os mesmos que agora o querem fora do Palácio do Planalto (e da política), o mais urgente possível. Mas o incrível é que empresários, militares, gente do agronegócio, além de deputados e senadores, ninguém cogita o impeachment do sujeito. Até o Lula é contra. Fala-se algo menos “doloroso” - um afastamento para tratamento de saúde. É por aí, o jeitinho brasileiro a mover os pauzinhos, em mais uma jogada de mestre para que as placas tectônicas do sistema se acomodem sem trauma. No fundo, todo mundo quer chegar em 2022 com as unhas afiadas, pouquíssimas lesões e, se possível, livre da máscara.


Dia 37

A turma que subiu ao pódio da canalhice por obra e graça da mesquinharia nacional, gastou saliva odienta falando de uma tal caixa-preta do BNDES, que era preciso abri-la e coisa e tal… Fizeram disto um cavalo de batalha e acabaram por contatar dois escritórios de investigadores internacionais para realizarem uma devassa em vários contratos do banco. E o que encontraram? Nada, nadica de nada. Todos os contratos existentes foram firmados dentro da mais completa lisura. E aí vem a bomba: Os sherlocks, após exaustivas pesquisas, apurações, raciocínios dedutivos, fala daqui, ouvi dali, confere isto, tica aquilo… produziram um relatório de 08 (OITO, eu disse oito, o-i-t-o, 5 mais 3, 6 mais 2, 4 mais 4, 7 mais 1… sacaram?) singelas páginas onde afirmam, em letras garrafais, não existir nenhum esqueleto dentro da caixa denominada preta do BNDES. Todo este vira-e-mexe saiu por nada mais nada menos que a bagatela de 48 milhões de reais, fatura que o Tribunal de Contas da União não consegue explicar nem com reza braba. O Brasil, atualmente comandado por lunáticos, dementes, esquizofrênicos e psicopatas, sem choro nem vela, morreu em 48 milhões de reais por 8 (OITO) páginas de papel sulfite tamanho A4 que certamente encontram-se esquecidas nalguma gaveta palaciana (se não foram jogadas em alguma lixeira). Só no país tropical bonito por natureza é possível que gente desqualificada, desmoralizada e desacreditada torre dinheiro público para provar que são, de fato, desqualificados, desmoralizados e desacreditados.


Dia 543

A guerra híbrida segue em curso e se desdobra: temos aí a “guerra comercial” entre os EUA e a China. Em jogo, o domínio da tecnologia 5G pelo mundo afora além da supremacia militar na Ásia e no Oceano Pacifico. A China é uma superpotência, inegavelmente. Em 60 anos, saiu de uma realidade medieval e agrícola para alcançar o patamar de potência industrial, comercial e científica. Os EUA, guardiões do livre mercado, não aguentam conviver com este concorrente à altura. Os valentões do velho oeste, e seus capangas, passaram então a fomentar a xenofobia ao apregoarem que o mal estar causado por um vírus que produz pneumonia e leva à morte os indivíduos infectados é obra da genialidade chinesa em busca do domínio total do mundo. Em vez de solidariedade, o governo Trump declarou que nada faria contra a pandemia porque os chineses já estão fazendo o que é preciso — um modo de dizer que não vai mover uma palha para evitar que mais e mais norte-americanos e cidadãos pelo mundo afora morram à míngua. Enquanto isto, a China constrói um hospital para 1000 leitos em 48 horas.


Dia Zero

Quando o fascismo, associado aos liberalistas econômicos e pentecostalismo de resultado, conseguiu estabelecer velocidade cruzeiro na tarefa de dominar o mundo… No dia 31 de dezembro de 2019, a Organização Mundial da Saúde (OMS) foi alertada sobre vários casos de pneumonia na cidade de Wuhan, província de Hubei, na República Popular da China. Uma semana depois, em 7 de janeiro de 2020 as autoridades chinesas confirmaram que haviam identificado um novo tipo de coronavírus, o SARS-CoV-2, transmissível por morcegos, capaz de causar a morte de seres humanos. Segundo uma estimativa do jornal The Economist, é possível que ocorra entre 7 a 13 milhões de óbitos, algo comparável às mortes durante a 1ª Guerra Mundial. Dois anos após o início da pandemia, entre vacinas, vacilos, cuidados e doses brabas de negacionismo, um novo normal tornou-se uma perspectiva remota. O mundo, como conhecíamos, desde aquele dia já era. Restaram apenas algoritmos sacanas e a uberização da vida.