Mostrando postagens com marcador Contos. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador Contos. Mostrar todas as postagens

sábado, 24 de fevereiro de 2024

Síndrome de Bentinho

 

Atrás da cabeça, Argishti Mesropyan, 2019


Moribundo, agarrado na mão do filho, não consegue evitar o pensamento que o persegue desde sempre: “fruto meu, resultado da minha união com uma infiel dissimulada de olhos oblíquos, tu és gay, pois não?!”

E mirou a filha: “Quanto a ti, minha filha, flagrada em indecências com outra garota… bem, talvez venha a me dar alguma alegria… menina arretada, sim senhor.

E acordou no 8º círculo do inferno dantesco. "Era gay, não tenho dúvida". 




sábado, 27 de janeiro de 2024

O velho barbudo da casa de fundos

 

Google Imagens




Em geral, o sujeito adulto perde a curiosidade deixando no lugar o sentimento fofoqueiro de saber e se deliciar com os segredos e as desgraças dos outros. A criança não. A criança olha, vê e quer saber de tudo.

Na rua de cima, havia um portão amarelo, com uma sineta por campainha. As crianças que moravam por ali adoravam competir pra ver quem conseguiria tocar mais vezes aquele sino na vã tentativa de fazer com que o velho barbudo que morava no fim daquele corredor estreito e escuro viesse até o portão e dissesse alguma coisa, qualquer coisa: era o desejo secreto de cada um – ver e ouvir aquele estranho se manifestar, já que o comum é vê-lo subir com esforço a pequena ladeira, sem dizer palavra, até a casa que nenhuma daquelas crianças fazia a menor ideia como seria.

Seria um bruxo, um feiticeiro capaz de transformar cada um em sapo ou coisa pior, só pelo prazer de castigá-lo pela perturbação? Seria sua casa um buraco que ia dar no fim do mundo? Se sabia atiçar todos os cachorros na madrugada, fazendo-os latir mais que o habitual, seria ele um comedor de gente, um lobisomem, um vampiro, um diabo disfarçado de gente?

E todos acabavam indo dormir, obrigado ou não, com a pergunta martelando na mente: Quem era aquele velho silencioso e taciturno que vez por outra levava a paralisação da brincadeira para todos pudessem observar os passos exaustos que ele insistia em continuar praticando em direção à sua casa misteriosa.

Alguns adultos, por força de circunstâncias, visitaram a casa do velho barbudo, viram o que era pra ver mas não fizeram esforço para aliviar a imaginação das crianças, afinal não faziam ideia do que as perturbavam nem tampouco sabiam como satisfazer suas dúvidas e interrogações.

E elas, reunidas, no cair da noite, brincavam com intensa alegria. O velho barbudo ouviu um ou outro choro mas compreendia que era apenas um conflito com uma mãe que a queria na cama ou no banho.

E nestas horas em que até os cães se calavam, o velho barbudo pensava apenas numa frase que ouvira a muito tempo: “onde tem criança o diabo não fica”. E se dirigia à cama para mais um sono tranquilo.


 

sábado, 6 de janeiro de 2024

O barro que caiu do céu

 

The Alchemist Cook, Marina Pallares, 2011


Vindo de uma longínqua galáxia, um raio de luz se aproxima do nosso sistema solar. É um meteoro. 

Na Terra, um velho camponês observa a rocha celestial cair do outro lado da colina. Entra na cabana, consulta manuscritos, apanha alguns instrumentos e sai pela porta afora correndo em direção ao local da queda. 

Em torno da enorme cratera recolhe o que consegue e volta para casa. Separa um pedaço e o restante guarda num cofre. Num moedor, reduz o fragmento a pó que, misturado com um pouco de água, produz uma argila escarlate. 

Brinca com a massa, até que, finalmente, molda uma figura – figura humana. Admirado, a leva ao forno para cozer. Após a queima, retira a estatueta, deposita numa prateleira, dá-lhe um beijo de boa noite e vai dormir. 

Tudo em volta é silêncio. Os olhos da criatura lentamente se abrem. Examina tudo à volta. Um livro atrai sua atenção. Pega. Vai até o pé da cama do velho com o livro nos braços, folheia e logo adormece. 

Ao acordar na manhã seguinte, o velho, admirado com a sua criatura, confere o livro - é a história de um menino-feito-de-madeira-que-quer-ser-gente-de-verdade. Passa a manhã preparando uma linda roupa para o seu homenzinho-de-barro-que-veio-do-espaço pois desejava muito apresentá-lo ao rei. 

Buscou um pretexto para ficar a sós com a majestade. Mas em vão, os figurões do palácio o cercaram com perguntas sobre o fenômeno que todos viram ontem, se aquilo era um sinal dos deuses, se algo de bom ou de mal estaria para acontecer, se o reino estaria ameaçado por algum tipo de força estrangeira… 

Diante de tantas indagações, falou o que pode, da posição dos astros, dos mapas astrais, apresentou um manuscrito e num ato de coragem tirou do bolso o garoto-do-barro-espacial e ninguém acreditou: caíram na risada e disseram que aquilo era uma brincadeira de mau gosto num momento de grande preocupação. Que aquilo era mágica barata, de quinta categoria. De que jeito um boneco de barro que se mexia poderia ser útil ao reino? 

E tomaram o menino-de-barro e jogaram com ele como se joga peteca. O velho, confuso, conseguiu finalmente pegar sua criação, colocá-la de volta no bolso e saiu do palácio, abatido por conta das piadas e chacotas dos fidalgos. 

No caminho de volta, o velho, frustrado, examinou se o menino-barro era mesmo algo a ser preservado, se servia para alguma coisa, se podia lhe ajudar a entender as propriedades e virtudes da rocha que veio do espaço. 

E após muito se interrogar, decidiu que o melhor seria esquecer tudo e se livrar da sua criação. Ao chegar numa encruzilhada, colocou a criatura no caminho oposto e faz sinais para que desaparecesse. A criaturinha não compreendeu aquele comportamento e, em vez de seguir pelo caminho indicado, decidiu acompanhar o mestre. 

Ao chegar em casa, o velho ainda tentou destruir o menino, o jogando ao fogo… mas se arrependeu, pediu perdão com muitos beijos e abraços. Eufórico, começou a tossir e tossiu tanto que desmaiou ali mesmo sobre a mesa. O garoto se colocou ao seu lado e pegou o livro com a história de um homem-que-cria-um-homem-com-pedaços-de-outros-homens para, antes de dormir, dar uma folheada. 

Passado um tempo, a criatura cresceu, mas ainda é de barro. Cuida dos afazeres da casa, enquanto o velho continua sobre a cama, doente, a definhar. Dedicado, domina as diversas artes que fez a fama do artesão. 

Um dia o velho o chamou pra si, lhe apontou o cofre donde foram retirados fragmentos do meteoro, manuscritos desconhecidos... E num ato final, pousou a mão sobre a cabeça do menino-homem-feito-da-pedra-que-veio-do-céu que, num passe de mágica, se viu transformado numa pessoa de carne e osso. 

O camponês-artesão sorriu para o seu filho e morreu. O rapaz envolveu o corpo em lençóis e o conduziu nos braços até a cratera do outro lado da colina onde o meteoro havia caído. 

Tristes, alguns vizinhos apareceram para o último adeus e, atônitos, viram o corpo do velho virar facho de luz e ganhar o céu e sumir na imensidão da noite centelhada de estrelas. 

Agora, a criatura humana dedicada a estudar o céu profundo, ocupa o lugar do mestre. Ajuda os vizinhos em suas solicitações. Tem sempre uma nova maneira de resolver velhos problemas. 

Os dias continuam ensolarados. As noites continuam estreladas. Meteoros continuam a cair do céu. E aquele-menino-homem-que-nasceu-da-rocha-que-veio-do-espaço segue moendo as rochas recolhidas para fazer argila vermelha. Nas horas solitárias, continua a brincar de moldar criaturas de todos os tipos, gêneros, tamanhos, formatos e cores. 

Na corte, o bando de nobres tolos continuam entregues aos seus esportes prediletos: festas, jogos e cobrança de impostos. 

O jovem artesão, após um dia exaustivo de trabalho no sótão da cabana, esquece o telescópio e as anotações. Apaga o candeeiro, desce à sala… Suas criaturas o saúdam. A cada um dispensa um gesto de carinho, um beijo, um abraço… Embora o sorriso não lhe saia do rosto, traz os olhos cansados. Coloca um pouco da sopa num prato, mas tem o pensamento noutro lugar. Levanta-se, vai até uma escrivaninha e vasculha planos… Planos para criar sua obra-prima. 

Na janela, olha o céu, destaca uma constelação, alcança uma galáxia, um sistema solar, um planeta, um campo, uma cabana, um laboratório cujas paredes e móveis estão cobertos de livros, manuscritos, planos e instrumentos. 

O menino-homem-que-foi-criado-do-barro-que-veio-do-céu não é mais barro, nem menino, tampouco homem… É um raio de luz que, transformado em pedra, cai no parapeito de uma janela enorme e ali fica a observar uma moça reduzindo a pó fragmentos de rocha. 


 

sexta-feira, 22 de dezembro de 2023

a história do bem viver

 

O Mazzini Moribundo, Silvestro Lega, 1873



foi uma vez

pras bandas do oriente

era uma tribo de criadores de cabras

cujo pai de todos adoeceu…


sem esposa que lhe cuidasse

(se esquecera de casar outra vez)

à espera da hora final,

desaparecia sobre o leito


na sombra do meio dia fatal

os descendentes, reunidos em torno dele,

ansiosos para ouvir quem tomaria seu lugar

(cada um a querer pra si a honra

de comandar os destinos do clã)

e herdar uma montanha de bens

passíveis de serem trocados por prazeres


antes do último suspiro, o ancião

lembrou moribundo

que ao comunicar sua condição

a todos os filhos e filhas

recebeu a mesma resposta: se cuide!

mas apenas um devolveu:

posso ajudar em alguma coisa?


chamou pra si a mão daquele filho

a abraçou sobre o peito,

e antes que sumisse para sempre,

deu-lhe o anel da família

sussurrando o segredo

da história do bem viver e cuidar.


 

sábado, 4 de novembro de 2023

Nascido para morrer

 

A Morte de Marat, Jacques-Louis David, 1793


Duda formou-se em Educação Artística. E foi dar aula.

Professor, na minha opinião, arte é coisa de viado. A classe desabou na risada. Era assim, quase todo dia.

Em casa não era diferente. O pai o queria advogado, médico ou engenheiro… a mãe sonhava-o padre… as tias e as irmãs bem que queriam vê-lo vereador, talvez prefeito… Era um garoto esperto, todo mundo falava: vai ser grande na vida!

A cigana que o jogou contra a parede do Cine São Luiz, em plena rua do Comércio, vaticinou, numa tarde maio, que enfrentaria tudo e todos mas terminaria coberto pela fama.

Desacreditava do destino mas na cigana acreditou. Faria a diferença, sim senhor. Saiu da casa dos pais, alugou um apartamento, evitou ao máximo a convivência familiar e se lançou a pesquisar o folclore, incentivar os jovens a olharem para o passado com reverência e, quem sabe, obterem meios de alcançarem uma expressão artística, e por via de consequência uma postura ética. Afinal, considerava a experiência artística o suprassumo da existência humana.

E decidiu começar sua jornada investigando aqueles que, sem quaisquer referências, conseguiam se expressar com autêntica beleza… Se envolveu com os folguedos, as danças, o teatro mamulengo, os cantadores, os repentistas, a literatura de cordel… Tornou pra si familiar aquele universo, vivenciou aquilo que o povo, movido apenas pela necessidade de se entreter, produzia encanto suficiente para abrir as portas da percepção e alcançar o inusitado, o inusual, o estranho… Encontrou um meio de sair do seu mundinho cotidiano de contas a pagar, guiado por uma moral mesquinha e foi adiante, repleto de possibilidades, perspectivas, aceitação e, sobretudo, alegrias.

Porém, por ainda viver cindido entre a rejeição e a comunhão, e ansiando a soma, a multiplicação, abriu as portas do seu refúgio (e do seu coração) a quem quisesse compartilhar da sua utópica visão prazerosa de estar no mundo. Juntou uma meia dúzia de iguais.

Contudo, boas intenções são vigiadas de perto por vermes. E quase como um mantra, nesse mundo de prazeres sofridos e escassos, eis que nosso protagonista é alcançado, numa tardinha de sábado (de olho no domingo de praia com uns chegados, boa conversa, comida farta, leõezinhos…), por um flerte fácil, tenro… Superficial, mas aveludado.

Na madrugada, a polícia civil foi acionada por um vizinho que estranhou esquisito zunzunzum… Duda fora encontrado estrangulado, apunhalado sete vezes e o coração arrancado.

Ao meio dia, quando a família chegou, todo o acervo acumulado pela vítima, ao longo de seus tantos anos à frente da Diretoria de Cultura Popular do Estado, foi transformado em lixo, queimado, esquecido.

Um amigo conseguiu chegar a tempo de salvar algumas peças e ouvir, entre resmungos e imprecações a sentença do pai:

- Arte é coisa de viado. Foi ela que fez do meu filho um invertido, disse, mutilando uma das telas naif que o filho exibia no centro da sala, repleta de máscaras, fotos e estantes apinhadas de livros. Tudo inútil, nada o salvou…


 

sexta-feira, 18 de agosto de 2023

O nascimento do mundo

 

Kipper, ilustrador gaúcho


No começo só havia energia vagando na escuridão do espaço infinito.

Então, veio a luz e dela surgiram o Pai Céu e a Mãe Terra.

Céu e Terra tiveram muitos filhos, dentre eles a Água, o Vento, a Guerra e também Nada - coisa nenhuma.

Pai e Mãe viviam num perpétuo abraço de amantes.

Acontece que esse enlace apaixonado não deixava a luz penetrar entre seus corpos, onde ficavam os filhos.

Obrigados a viver apertados e sempre no escuro, os jovens resolveram dar um basta na situação.

Vamos matar Céu e Terra – disse Guerra. - Não! gritou Floresta. – Vamos apenas separá-los, empurrando um para cima e deixando o outro embaixo. Assim sobrará espaço para nós e a luz vai poder entrar.

Todos acharam a ideia excelente.

Floresta, que era o mais forte de todos, firmou bem os pés na Terra e encaixou os ombros no Céu e o empurrou para cima com toda a força.

Os pais se separaram. Mas que decepção! Só um pouco de luz alcançou os filhos. Além disso, Céu e Terra estavam nus e, longe um do outro, sentiam muito frio.

Comovido com a situação, Floresta cobriu o pai com o manto negro da noite e para a mãe fez um vestido com as mais verdes e tenras folhas e as flores mais coloridas. Em torno dela Água fez ondular os mares e os rios e Vento soprou uma brisa nos cabelos da mãe para alegrá-la. Só Guerra não ajudou, porque, nesta hora, estava criando os seres humanos para tomar conta do mundo. 

Olhando lá de cima os lindos trajes da amada, Céu ficou doente de inveja e sua dor cobriu o mundo com uma névoa úmida e cinzenta.

Refugiado numa dobra do manto paterno, Nada chorava e chorava por não ter sido útil aos pais e aos irmãos.

Para que ninguém percebesse suas lágrimas, as escondia em cestas e mais cestas. Mas Floresta tudo percebera.

- Zero, meu irmão, preciso de sua ajuda.    

Nada tenho para dar, você bem sabe.

Ora, você tem tantas cestas

Surpreso e com medo de ser descoberto em sua fraqueza, Nada abaixou a cabeça, envergonhado.

Floresta avançou e destampou uma das cestas. Dela voaram luzes faiscantes e risonhas para todos os lados.

As lágrimas de Nada haviam se transformado em crianças-luz - as estrelas.

Nada, será que você podia me ceder duas de suas cestas? Seus filhinhos poderiam enfeitar e iluminar a morada de nosso pai.

Nada concordou e colocou as duas cestas dentro de uma canoa.

Floresta a conduziu até alcançar o Céu e espalhar sobre seu manto milhares de estrelinhas que riem e piscam umas para as outras o tempo todo.

Quando Floresta ia pegar a segunda cesta, esta tombou e se abriu, deixando as estrelas se espalharem.

E foi assim que se formou a Via Láctea. 

Da canoa que Floresta deixou no espaço celeste nasceram os guardiões das estrelas - as constelações.

Adaptação de lenda Maori



sábado, 20 de maio de 2023

Comes terra?


O Missionário, Emil Nolde, 1912

 


Comes terra?

O velho pároco da Vila de Guaratuba, vizinha da cidade de Paranaguá, comentou, certa feita, durante a missa, que não daria confissão e, por consequência, comunhão a nenhuma mulher, moça ou menina, que comesse terra, chupasse caco de telha ou lambesse tijolo.

No domingo seguinte o autoritário sino convocou, mas ninguém apareceu.

Na bodega do Gael, Ambrósio de Helena fez questão de dizer, com a sua intensa rouquidão, que ninguém tem o direito de apontar o dedo para seu ninguém ali na Vila. E explicou, “tirando as crianças, todos são pecadores”.

E lá se foi, cambaleante, encontrar conforto nos braços da sua Valentina. 


 

sábado, 22 de outubro de 2022

O cavalinho-de-deus

 

Google Imagens


A exemplo de Machado e Graciliano: um general, habituado a falar para as paredes (mesmo quando se encontra entre pariceiros), autoproclamado tutor da nacionalidade por osmose, imerso em dúvida categórica, pontua suas parcas e solipsistas memórias.

Assaltado por um e outro choque de realidade, choraminga afogado em autopiedade: ninguém o entende, ninguém o obedece, ninguém o ama, ninguém o quer.

Sob o olhar seguidor de cópia sfumatada da sua mãezinha – vítima do pai e algoz dos servos e servas, procura inimigos debaixo da cama enquanto exercita seus soldadinhos de plásticos em custosas simulações de guerra. Infelizmente, suas suadas, gloriosas e imaginárias vitórias, ao fim e ao cabo, não lhe trazem qualquer conforto, alegria ou proveito - daí seu estado danado.  

A boca solta, navega a aposta de que acabe por dar entrada nalguma instituição psiquiátrica ou venha a cometer suicídio – afinal daquele mato, ou melhor, daquele quepe todo coelho sedento de sangue alheio é possível.

A maldição positivista que passa pano para o compadrio que assola e atormenta o mundo à volta, torna-se responsável pelo expurgo do horizonte futuro daquela casa portuguesa (com certeza) de acordo com o duvidoso brasão que orna o frontispício da reclusa morada situada no fim da rua de cima, à beira do precipício.

Um dia, num gesto imprevisto da sorte, trupica e cai sobre uma pedra angular. Desgraçado, tem o crânio afundado em postas. A perícia atesta, de pé junto, que não há nenhum vestígio de humanidade na cena do crime.

De acordo com desejo expresso em testamento, o velório é dispensado. Manifestado temor ao fogo, o corpo é sepultado numa cova rasa e anônima - sem choro nem vela ou qualquer marcação.

Após três anos, agora sob o seu próprio e sfumatado olhar impiedoso, num quadro 60x40, realizado por uma pintora autodidata ávida de reconhecimento, os restos mortais, secretamente, foram transportados, numa urna à prova de hackers, para a ilha dos esquecidos e ninguém nunca mais tocou no assunto.

O saldo restante é que, no orçamento da nação, sem que nenhum contator se dê conta, consta o officium obligatio de pagar soldo à filha estéril por toda a eternidade. Com base nisto, dizem os mais secretos pensamentos, dos mais recônditos e miseráveis indivíduos, que a manjada e deslembrada virgem viúva tem por hábito devorar a cabeça de qualquer um que ouse dar uma olhada na sua face oculta.


sábado, 10 de setembro de 2022

Na beira dos macacos

 


Um pescador, Tarsila do Amaral, 1925

A professora Marialva – galega apessoada e ferina nos olhos, aceitou trabalhar na Beira dos Macacos depois de descobrir que o lugar tinha o que mais desejava na vida: praia, brisa e sossego.

Alugou uma casinha e decidiu que ali, naquele povoado de gente fina, criaria seu filho, cuidaria de uma horta e, quem sabe, morreria, um dia, nos braços de um homem gentil.

Na sala de aula insistia em preparar trinta alunos para um mundo em construção, enquanto nos dias de folga se estirava na alvíssima prainha do Bororé a ouvir a alegria do seu menino, na prancha, a ensaiar manobras nas suaves ondas que rebentavam próximas aos seus pés.

Em todo idílio habita uma serpente. E Marialva enxergou um homem (??) se masturbando ao lado do coqueiro seco. Seus olhos longínquos doeram. Por que cada centímetro a descoberto do corpo de uma mulher é um chamado à pornografia? Humilhada, chamou o filho.

Foi falar com o cabo do destacamento, ali, na porta da bodega. Por três vezes fora alvo de lascívia, disse. Sentia-se vulnerável, reforçou. O militar falou que estava anotado e que ficasse tranquila, investigaria.

Em casa, toda noite ao botar o menino para dormir, encafifava: Ousaria o tarado aproximar-se, tocá-la? Começou a ter insônia.

Um dia decidiu que levaria suas preocupações até onde fosse possível. E foi à pracinha conversar. Falou com um, com dois… falou com tanta gente e não encontrou jeito de se sentir segura. A situação piorou quando viu o tal homem e o fardado, ridentes, partilharem uma meiota de cachaça.

Investigou por conta própria: o sujeito era capataz no sítio Belo Coco, casado, três filhos… Procurou a esposa. A pobre não acreditou e a expulsou aos berros - “Em nome de Jesus, meu marido é pessoa de bem. Como posso acreditar em ti, mulher sem homem?!”

- Procura o Biu, alguém disse baixinho e passou-lhe a visão. Marivalva decidiu que se os costumes estavam jogando contra ela usaria um coringa: buscou Nego Biu.

O chefe do tráfico disse que ficasse de boa que, por seus olhos verdes, por seu porte, seu trabalho, sua palavra, daria seu jeito e desapareceu sonhando com a professora casada com seu irmão pescador.

Na Beira dos Macacos nunca mais se viu jacaré brechando as mulheres nas praias. Ninguém morreu. O tarado foi mandado pros cafundós dos judas, com um selo na testa…

Na festa de Iemanjá, Marialva conheceu Deolindo e se apaixonou pelo perfumado jangadeiro. 



sábado, 2 de abril de 2022

A viagem


Matched Marriage, Quentin Marsys, 1530



Dissemos um ao outro: vamos viajar, sem volta! Era um tempo duro, suado, nada de dinheiro fácil, havíamos de economizar. Ao contar tostões alcançamos suficiente para comprar a passagem mais barata num daquele ônibus pirata. Aí justifiquei: luxar pra quê, se desta vida não se leva nada? Além disso, é uma aventura, sem pressa para chegar a algum lugar, viagem de curtição, com paradas aqui e ali, tempo de sobra para curtir a paisagem.

Ficara bom nesse negócio de inventar desculpas para não fazer a coisa certa. Mas o que sabia eu da coisa certa? Naquela longa época tinha muito poucas ideias. Sobrava o que eu sentia e pronto…. apesar dos protestos e das advertências (que não ouvia e se ouvia não entendia).

Juntamos as trouxas… só não juntamos as escovas porque aí seria nojento e não estávamos a fim de ser chamados de hippie ou, pior, comunistas… e fomos para o ponto, aguardar a embarque.

Não invento: o local estava tomado de gente. E chegava mais e mais. Uma horda do tipo retirantes e nós iguais. Porém, apenas eu e ela havíamos combinado partir para aquele lugar algum.

Procurei-a para confirmar, mas envolta pela multidão começara a se afastar cada vez mais. E esta constatação jogou-me num abismo: sabia de fato o significado da partida?… qual o ônibus?… qual a companhia? Em meio a esse frenesi, percebi que havia começado a perder a noção e a lembrar que esquecera de perguntar ao vendedor se o ponto era aquele mesmo e o qual o horário de partida? 

Minha derrota foi presumir que ônibus, todos eles, passam pela mesma estrada, a estrada na qual me encontrava. E se era assim, melhor acalmar: o ônibus que me (nos) levaria apenas de ida a algum lugar, a qualquer momento pararia bem ali, no ponto em que estava, envolto por esta multidão que me desconfortava e aumentava a distância entre eu e aquela… mas, onde estaria agora?

Presumi além da conta. Minha esperteza deu chabú. Desesperado, procurei o número telefônico da empresa… queria alcançar o setor de informações… mas, nada, nada trazia nos bolsos além de um contrato manuscrito em chinês tradicional em quatro folhas de papel almaço. Traição!

Havia sido traído. Mas calma: fora eu meu próprio traidor. Qual o quê? Tentei abrir espaço entre as gentes, buscando alívio. Queria falar com ela, prometer em alto e bom som que iria ressarci-la mas meu esforço se mostrou vão e paradoxal: cada vez que buscava me aproximar, mais ela se afastava e mais eu me afastava do ponto em que deveria embarcar no ônibus que nos (me) levaria a algum lugar e a multidão em volta não dava a mínima para qualquer movimento que eu viesse a fazer, abarrotado de tralhas em louca disparada, através de ruas, vielas, becos, solos e subsolos – em busca de encontrar o guichê onde havia comprado a passagem mas desembocara num mundo onde a verdade ia ficando cada vez mais inacessível.

Impossibilitado de alcançar, quis gritar, xingar, maldizer… grimas ansiosas de liberdade vieram em meu socorro. Larguei mão, abri as comportas do desespero e do alívio. Busquei refúgio no primeiro templo que encontrei pela frente. O sacerdote não se deu ao trabalho de responder minha indagação convulsiva sobre o que estava acontecendo? Condescendente, me ofereceu um lenço branco que acabei por esquecê-lo no bolso de uma velha calça nos anos que se seguiram.

Reparem: esta é uma estória de fraqueza. Não lhes contei aquilo que escapa por não buscar os instrumentos que me permitissem entender o que precisava entender. Tudo que acabei de narrar foi uma pequena tentativa de contextualizar um mero sonus convulsus: pesadelo, que tem me torrado a paciência cada vez que lembro dele.



 

sábado, 26 de março de 2022

A guerra que nos vive

 

War, Marc Chagall, 1915



Partiria. Atenderia ao chamado, decidiu.

Que o esperasse, com uma torta de frango sobre a mesa, pediu e jurou, diante dos olhos tristes da mulher, que retornaria assim que o conflito terminasse.

A ela (enquanto ajudava na arrumação da mochila) ocorreu que o caos não duraria para sempre…

Até riu, e contentou-se, tudo passa, fixou!


Mas o esperado demorou…

E o tempo, implacável, se sucedeu em opressiva inutilidade.

Então, as mãos cansaram, os seios murcharam… os dentes caíram até


Numa desavisada manhã, sem que nenhum estrídulo de sirene arranhasse o ar, a própria esperança se extinguiu e o relógio cessou a vigília.


O que era vivo faleceu e o que tinha perecido insistia em viver.


Enfardado de cicatrizes e remorsos, o maltrapilho homem cruzou o vão da porta morta.

Automática, a vista perscrutou a sala fúnebre e ao sentar-se à mesa defunta sentiu que o abandono era sua única companhia.

E ali, habituado ao vazio conquistado, compreendeu que morrera no instante em que partira.


Lá fora, a guerra zurrava. 



        

sábado, 4 de setembro de 2021

E eles viram o futuro...

 

Guerra Total, Dan Witz, 2015




A reunião estava marcada para três da tarde. Quinze minutos antes, ela se apresentou na recepção e foi convidada a subir – uma assistente iria recebê-la na saída do elevador. Sozinha, diante do espelho, deu leves retoques na aparência, limpou com o mindinho uma mancha de batom que lhe escapulia no canto da boca, ajeitou o cabelo e aguardou a porta abrir.

Um tremor percorreu a espinha da assessora, quando a viu. Se tivéssemos acesso ao histórico da vida íntima dessa moça, veríamos que sua figura esquálida, resultado de um projeto minimalista, consistia apenas de um sorriso marmóreo fixado, sem nenhum contraste na máscara que servia de rosto e que nunca a flagraríamos em desejos sexuais na direção de qualquer pessoa muito menos em relação a outras mulheres... No entanto, ali, alguma coisa a atingiu, provocando-lhe a impressão de que, praquela outra, carregaria bondes. Mas como boniteza e tesão são conceitos relativos, fez de conta que não era com ela e apenas limitou-se a indicar a direção. - Por aqui!

O currículo impecável passou por toda a cadeia de comando da Tomorrow e acabou na mesa da diretora de desenvolvimento que, contrariada, não via necessidade da contratação de novo colaborador. Porém, em face dos tantos "ok" emitidos pelos sócios ficou meio que numa saia justa. Mas, decidida a fazer o seu trabalho, convocou toda sua equipe para participar da avaliação e cobrou um rigor além do necessário. Alegou que o cargo a ser preenchido era altamente estratégico e que não estava disposta a arriscar o futuro do seu departamento.

Quando ela entrou, a sala foi tomada por uma espécie de transe e embora ninguém tenha esboçado qualquer reação àquele impacto, o clima pesou. Ela sentiu a gravidade mas não demonstrou abalo e colocou diante de si, sobre a mesa, o conteúdo da pasta que trouxera a tiracolo e preparou-se para a apresentação.

- Você veio muito bem recomendada, disse a diretora, com um certo desdém perceptível apenas por quem lhe vinha prestando serviços nos últimos cinco anos. - Quem sabe você venha a apresentar alguma coisa que nos desperte apetite

Todos se mexeram nas cadeiras, alguns fizeram esboço de que iam tomar a palavra mas foram apenas falsos movimentos, jogos de cena, trejeitos de poder, afinal ninguém sabia muito bem como agir diante da possibilidade de que aquela desconhecida pudesse representar qualquer ameaça ao departamento e, consequentemente, à toda poderosa diretora.

Mas ela possuía todas as qualificações e ia além, dava de lambuja uns dez projetos onde tinha conseguido resultados que explodiram no íntimo dos presentes como edições especiais em horário nobre de todas as TV comerciais. Seria uma aquisição e tanto, capaz talvez de duplicar o faturamento em muito pouco tempo. Faca nos dentes ele tinha. E entregava o que prometia. Via-se nos comentários de diversas fontes, em recortes escrupulosamente catalogados numa pasta à parte, onde apareciam notas e resenhas de influenciadores econômicos, dos melhores informativos em diversos níveis da cadeia lucrativa.

Com uma lucidez que nunca foram capazes de obter em nenhuma de suas epifanias de marketing, viram como num filme, o futuro deles e do departamento: aquela mulher era o caos mais lindo e perfumado do mundo; assistiram tsunamis, participaram de degolas, colaboraram em suicídios… tudo para que ela palmilhasse um caminho até o topo com a tenacidade dos predadores… e, ao final, sentiram seus dentes brilhantes penetrar-lhes as carnes, mastigá-los e engoli-los, um a um, sem dó nem piedade.

Ninguém vacilou em dar o seu não. Ninguém é maluco a ponto de colocar sua cabeça a prêmio, assim de graça, apenas para que acionistas possam babar sobre o lucro no final do semestre. Ficaram com o arroz e o feijão costumeiro, muito mais confortável.



sábado, 6 de junho de 2020

A mágica de fazer branco


Punindo Negros no Calabouço, Augustus Earle, 1822




Ouvi de um professor que disse ter ouvido da sua avó.

“No tempo da escravidão, cinco negros foram mandados para um fazendeiro, terror da região.

Se, naquela época, você fosse dono de escravos e, diante de qualquer desobediência, tivesse que castigar um negro, não perdia tempo dando chicotada nele, mandava logo para o Santos Silva. O temido fazendeiro sabia dar um jeito no rebelde.

Assim que os cinco negros chegaram na fazenda, foram levados direto para o tronco.

Santos Silva avisou: - Comigo, vocês vão ficar brancos.

E ordenou ao açoitador: - Cinco lapadas nas costas de cada um. Se um de vocês gemer ou reclamar, serão negros para o resto da vida. Mas os que ficarem em silêncio, se transformarão em brancos. Tenho um dom da magia, de fazer negro virar branco. Eu mesmo virei branco através dessa mágica.

Nas primeiras chicotadas voou sangue para tudo quanto é lado. A roupa de linho branco do Santos Silva ficou tingida de vermelho…

Plá, plá… Já não existia lugar no terreiro que não estivesse coberto de sangue… Espirrou sangue até nas paredes de dentro das casas.

Quatro negros se mantiveram em silêncio mas, o quinto gemeu e falou um palavrão em sua língua nativa.

Santos Silva mandou parar. O bigode dele tremia.

Soltem todos. Agora peguem só o que gemeu. Ponham ele no tronco principal. Sei muito bem o que ele falou.

E virando para os outros quatro, disse: - Vocês têm mais uma chance de virarem brancos. Cada um pegue um chicote. Agora terão a oportunidade de completarem a mágica. Devem chicotear este que gemeu e me xingou… A cada chicotada, vossa pele ficará mais clara. A transformação total dependerá da força com que cada um de vocês chicotear o lombo desse negro.

E surraram o quinto, chicotearam forte, enquanto o outro gemia, urrava, xingava e amaldiçoava o mundo.

E continuaram os açoites, cada vez mais fortes, cada vez mais letais, mas a única brancura que conseguiram foi a palidez do medo estampado em seus rostos”. 



sábado, 15 de fevereiro de 2020

Os ovos de ouro



Hallow Egg, Alexander Calder, 1939




Um dia, um gênio apareceu na cidade e ofereceu seus dons. Como ali todos eram pobres, lembraram da história antiga e cada um pediu uma galinha que botasse ovos de ouro.
O gênio, relutantemente, concedeu o desejo. Todos foram pra casa com a certeza de que agora finalmente não precisariam se preocupar com mais nada na vida.
Com o passar do tempo, ninguém mais precisou ou se lembrou de trabalhar.
Todo mundo agora era milionário. Ninguém mais produzia um alfinete que fosse. Afinal, tinham montanhas de ouro e podiam comprar tudo que desejassem.
Porém, o que havia em estoque um dia acabou. E como não tinham produzido nada para repor o que consumiram, logo as prateleiras dos mercados ficaram completamente vazias.
Quando, bateu a fome, não havia alimento; quando o frio entrou, não havia agasalho; quando a doença acordou, não havia remédios… E todo dia, a galinha de cada um botava mais um ovo de ouro que nem era comestível.
Perceberam que, na verdade, haviam desejado e recebido uma inutilidade, todo ouro que possuíam não valia nada.
Foi aí que decidiram matar suas respectivas galinhas, para aplacar a fome. E, de barriga cheia, voltaram aos seus afazeres anteriores em busca de suprirem suas necessidades e, eventualmente, produzir um tanto a mais que lhes permitissem trocar por outras coisas que precisarem.
Num passe de mágica, todo o ouro acumulado desapareceu da história e ninguém sentiu a falta dele.


sábado, 8 de fevereiro de 2020

O Paraíso Deserto



Cosmic Map, Bruno Munari, 1930




João da Silva Guimarães, mestre de campo, encarregado de desbravar o sertão baiano, está velho, cansado e delirante. Passa o tempo rememorando suas andanças em busca de ouro e prata para a coroa portuguesa.
No fim da jornada, tem como propósito escrever uma carta para El Rei (e estamos falando aí de algo por volta de 1760 e alguma coisa) onde narrará as aventuras de Belchior Dias Moreira, o Muribeca (Mosca Chata), filho de Diogo Alvares Correia, o Caramuru (Moreia, em tupi) com a cunhada Moema (Abençoada), irmã da sua esposa Paraguaçu (Mar Grande). Será uma história ouvida de várias vozes de um cem números de gentes, cujo título já tem pronto: Relação histórica de uma oculta, e grande povoação antiquíssima sem moradores.
Mas como a terra gira e a lusitana roda, a missiva, se chegar a ser escrita, ficará conhecida apenas Documento 512. E ficará arquivada na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro a espera de que, um dia, alguém a decifre. Porque ali estará firmado, com todas os símbolos e letras, que Muribeca saberia da existência de uma tribo desconhecida que exibia lindos enfeites dourados e prateados. Que, após muitos obstáculos e revezes conseguiu chegar a uma montanha cintilante, coberta de cristais. Que daí seguiu por uma estrada de pedra, passou por dentro de uma montanha e, finalmente, através de um caminho pavimentado, chegou a uma grande cidade onde, na entrada, havia três arcos (um central, grande; dois menores nas laterais) com inscrições grego ptolomaico (?). Que reparou que as casas eram todas iguais e interligadas. Algumas tinham mais de um andar. Que na praça central, havia uma enorme estátua, em pedra preta, de uma figura despida da cintura para baixo, com a mão esquerda sobre o quadril e o braço direito estendido a apontar para o Norte, trazendo na cabeça uma coroa de louros. Que ao lado da praça, corria um rio que desembocava numa cachoeira rodeada de tumbas e que, neste exato local, Muribeca encontrou uma moeda de ouro, que trazia, numa face, o relevo de um rapaz ajoelhado e na outra, um arco, coroa e flecha.
Envolto nesse mistério alucinante, João Guimarães se perguntava o que significava tudo aquilo? E via a si na estrada de pedras, entrando na montanha dos cristais, atingindo o caminho pavimentado e chegando aos três arcos na entrada da grande cidade… completamente em ruínas… mas não enxergava vivalma. E beirando o rio que beira a praça, chega à cachoeira, às tumbas, ao local onde Muribeca encontrou a moeda
Súbito, já se vê às margens do Rio Paraguaçu cumprimentando seu companheiro João Gonçalves da Costa que, a mando do governador da capitania, Manuel da Cunha e Menezes, estava dando guerra aos elegantes Mogoyóis em busca de ficar pé naquelas brenhas sertanejas do que um dia seria o estado da Bahia. E ali, sem qualquer reparo ou remorso, os dois articulam um plano infernal: promover uma festa, em honra dos nativos e após embriagá-los, mata-os todos. Desta forma nasceu o arraial da Conquista, mais tarde batizada de Vitória da Conquista, terra onde este narrador que vos fala tem um vago nome e escutou, certa feita, do mestre cantador Elomar esta singela estrofe:
Depois, depois de muitos anos
Voltei ao meu antigo lar
Desilusões que desenganam
Não tive onde repousar
Cortaram o tronco da palmeira
Tribuna de um velho sabiá
E o antigo tronco do oliveira
Jogado num canto pra lá
Que ingratidão pra lá

Por que a gente insiste em voltar? Porque há sempre o retorno. Porque havemos de ver o que poderia ter sido. Porque o mais grave de tudo é a gente esquecer. Isto fui eu quem disse, porque o João da Silva Guimarães, em meio a carnificina programada, vê surgir o Muribeca, com um mapa nas mãos e larga pra lá aquele mundaréu de corpos mutilados, aquela sangueira tingindo as árvores e o segue… pelo caminho das pedras, por dentro da Montanha dos Cristais até a entrada da grande cidade deserta.
Não entendo, para onde foram todos?
Talvez tenhamos errado nalguma dobra do caminho…! Respondeu João Magalhães, sem evitar de pensar em como contar esta história a El Rei sem que desse prova de estarmos todos loucos? Mas teve que interromper sua dúvida porque o Muribeca já insistia em rumar a conversa para outra banda
De que adianta o paraíso se não há gente pra olhar?