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sábado, 28 de junho de 2025

Um antigo rock rural

 

Imagem gerada no Google Gemini


Juvêncio morava direito: tinha roça, casebre com varanda; pai, mãe; irmãos e irmãs; uma penca de parentes: tios, tias, primos e primas em diversos graus; todos a incensarem o fato dele ser o esteio da família, lá nas brenhas do sertão, sob o olhar vigilante dos avós que vaticinaram um futuro auspicioso para o neto que dava vida e glória à terra onde nasceram.

Mas ele, molecão, falador, altivo, confiante e sobretudo pau pra toda obra, se sentia só. Queria uma família que fosse só sua: mulher, filhos e filhas para levar o seu nome por onde até a vista não alcança. Só não podia ser qualquer uma, queria uma mulher que fosse do seu talo, que tivesse a força que ele tinha, que quisesse a mesma coisas que ele.

Um dia (era São João), Juvêncio inventou de chegar até a vila para alegrar os olhos e o estômago com coisas que não lhe eram comuns no dia a dia. E foi aí que os castanhos de seus olhos se achegaram das funduras azuis-celestes dos olhos de Lia – morena, alta, corpuda, sorriso largo, dentes a ofuscar a vista e um perfume trazido direto do fim do mundo das histórias de trancoso que ouvia da sua mãe. Ela deu trela. Ele, que não era de se ignorar tampouco de se jogar fora, logo aproveitou-se do tempo e fez o relógio correr lento e ao contrário. Aí o mundo desapareceu e os dois sentiram que a vida era doce que nem mel de abelha. Trocaram meia dúzia de palavras e firmaram a impressão que aquela coisa de “amor a primeira vista”, tinha se dado como manda o figurino de toda literatura romântica. Enrabicharam, decidiram juntar o que era de juntar e esquecer o que era de separar.

Mas o mundo não gira de acordo com a vontade de amantes, ainda mais amantes novatos, sem nove horas, sem traquejo, desmaliciosos e atrevidos, disposto a enfrentar as revés do mundo que nem se fosse um dia na lida: limpar o terreno, preparar o solo, depositar as sementes, cuidar e esperar que os frutos nasçam sadios, longe do alcance das ervas daninhas e das pragas.

A beleza ingênua dos inocentes devia ser protegida por lei. Aquele que atentasse contra tal mandamento seria considerado criminoso lesa humanidade e condenado a expulsão eterna da Terra, exilado em Marte ou em qualquer outro planeta inóspito. Mas, infelizmente, o autor, tampouco os amantes, por mais que tentem, não governam o mundo.

Logo, Juvêncio recebeu recado do pai da moça para que abandonasse aquela ideia de jerico. Não lhe era permitido chegar perto daquela que escolhera para gerar nova leva de trabalhadores honestos que pretendia disseminar pelo mundo. E não se intimidou com a ameaça. Fez de conta que tudo se resolveria se juntasse sua parentela e fosse até a sede da fazenda do coronel Isaque entabular um diálogo sincero e justo sobre a união das duas famílias: queria Lia para casar.

Mas o velho Isaque, crente mesmo somente em três coisas: extensão de terras, dinheiro no banco e no parabellum que trazia dependurado debaixo do sovaco esquerdo; useiro e vezeiro em ruindades, danado para cometer estripulias e maldades; quando dizia não era não e ponto final. Se não se engraçasse com a cara do vivente, ainda mais se fosse tipo sem cabedal, melhor arredar, ficar longe. E quando o rejeitado insistiu em conversar, azedou de vez. Estava a pedir que lhe ensinasse com quantos paus se faz uma cangalha, ora vejam só! Juntou a jagunçada, botou todo mundo de prontidão e, com seu melhor sorriso de satisfação, deu ordens aos de casa que preparassem a recepção: queria limonadas, bolos de rolo, coalhada, paçoca… tudo do bom e do melhor.

Só Juvêncio sobrou. Seus avós levaram cada um três tiros nas caixas do peito, no instante em que saboreavam milho cozido lambuzado com manteiga de garrafa; seu irmão do meio, engasgado com uma fatia de cuscuz, foi arrastado até o açude onde o enforcaram num pé de pau e, após o cortarem em tiras, o botaram pra secar ao sol; seu irmão mais novo teve o pênis decepado e enfiado na boca que ainda guardava o sabor de um licor de jenipapo; suas irmãs foram todas defloradas e decapitadas diante de seus olhos e tiveram seus corpos besuntados com melaço de cana e jogadas sobre formigueiros; seus tios, tias, primos e primas, com os dedos melecados de tanto enrolar capitães de feijão tropeiro com macaxeira, tentaram se esconder no milharal mas o fogo os atingiu antes que pudessem alcançar a estrada de terra no fundo da propriedade; seu pai e sua mãe, enevoados pelo vinho do porto, encontraram a morte, chutados e pisoteados pelas botas da tropa de samangos vindos da capital, por ordem do governador para protegerem o homem que mais produzia combustível para alimentava o progresso da nação…

Após levar surra de cipó de fedegoso, ter as unhas arrancadas com alicate esticador de arame farpado; duas tiras do couro das suas costas retiradas com perícia cirúrgica; marcado na testa com ferro em brasa; engraxado com mel e largado diante de um enxame de maribondos-cavalos, Juvêncio rangeu os dentes diante do seu sítio incendiado. Ao ver a terra salgada, engoliu um seco e sumiu no meio do mundo sem sequer dar um tchau pra Lia que, longe dali, se moía de dor por se sentir responsável por tamanha desgraça. Ela que acreditava no amor e na união das pessoas pelo bem da humanidade, se viu tal e qual o próprio mal que assola o mundo. E morreu. Morreu de morte assumida, com uma dose cavalar de estricnina, surrupiada do arsenal do pai, misturada a um copo inocente de laranjada.

Ao sarar das feridas mas com cicatrizes que nem monumentos, Juvêncio resolveu acertar as contas com o passado. Começou pelas bordas, pelos parentes: um a um condenou a uma morte horrenda. E aqui o autor se recusa a fornecer detalhes por considerar o protagonista nada assemelhado a torturadores contumazes. Chegou aos próximos: fez valer sua vingança. Exterminou a jagunçada, os macacos, os aliados e caminhou em direção ao velho Isaque que o aguardava a mastigar vento, sentado na sua poltrona forrada com o couro dos seus inimigos. O potentado olhou seu pequeno mundo, sentiu um ralo desejo de rir e, orgulhoso, tentou se agarrar ao fio que lhe escapava por entre os miseráveis pensamentos e apenas teve tempo de golfar uma poça de escarro sangrento: um punhal lhe atravessara a garganta. Sua alma desceu aos infernos de onde jamais deveria ter saído.

Juvêncio caminhou léguas até encontrar o mar. Despiu-se. Mergulhou e partiu que nem estivesse a voltar para casa.


 



sábado, 31 de maio de 2025

Considerações Finais

 

Limpando a prataria, Armando Vianna, 1923


Não me perguntem quem fez a denúncia. Talvez alguém da casa, parente, vizinho – alguém com a consciência dolorida. Talvez alguém ferido em seus interesses ou sentimentos e, por isso mesmo, tenha aflorado, em si, desejos de vingança. Bem, pouco importa.

O fato é que agentes do Ministério do Trabalho, devidamente acompanhados por policiais militares, num certo dia, tocaram a campainha da casa de número 1500 de uma das alamedas mais limpa, bonita e cheirosa do condomínio Mirante dos Pavões e esfregaram na cara dos donos (uma dupla de profissionais liberais com raízes fincadas em velhos e decadentes cafezais) um mandado de libertação da doméstica Osmarina Dias dos Santos, mantida em situação de trabalho escravo por quarenta e oito anos.

Cheguei aqui com 13 anos… lavava, passava, cozinhava, arrumava a casa e cuidava das crianças… cuidei dos pais, dos filhos, dos netos e agora cuidava de um bisneto… três gerações foram alimentados com o leite dos meus peitos e até hoje o suor do meu rosto e o cansaço das minhas pernas e braços sustentaram esta família das 5 da manha até às 10, 11 horas da noite… quando os patrões iam pras festas eu não dormia, tinha que ficar acordada até eles chegarem e aí emendava… tinha que preparar o café da manhã, o lanche pras crianças levarem à escola, o almoço e nessa pisada ficava acordada mais de um dia… não saía, não passeava, não tive filhos, nunca mais soube dos meus parentes, cheguei até esquecer o meu nome porque aqui todos só me chamam de “preta”… acabei me acostumando sob a promessa de que um dia me levarem para conhecer a Disney… jamais pensei que poderia viver a minha própria vida”.

Ali mesmo na sala de estar, largamente decorada com motivos coloniais, dois agentes calcularam os valores devidos à vítima. O total da indenização, mais multas e juros, permitiria que ela vivesse, com folga, o restante dos seus dias onde quer que fosse. Outros dois não tiveram qualquer dúvida ao enquadrarem a família no artigo 149 do Código Penal e solicitarem o arresto dos bens do casal para cobrir todos os encargos devidos.

Os olhares do casal fuzilaram Osmarina com granadas de concussão e imaginaram rupturas de tímpanos e hemorragia cerebral seguidos do espalhamento dos membros e órgãos pelas ruas da cidade sendo esmagados pelos pneus do impassíveis automóveis cujos proprietários solicitariam, do poder público, compensação financeira pelos danos sofridos à propriedade privada.

No dia da audiência, o juiz, antes do bater o martelo e sentenciar aquela família temente a Deus a oito anos de prisão, além do pagamento de tudo que deviam à doméstica, cedeu a palavra à vítima para que fizesse suas considerações finais.

A moça foi de uma parcimônia exemplar: “Queria apenas que eles me agradecessem por tudo que fiz”.

E eu, que acompanhei tudo isto perplexo, com uma tremenda dor de estômago, pensei: “Osmarina será algum dia livre de fato”?



sábado, 10 de maio de 2025

Universo 25

 

Best Friends, Roger Ballen, 2016


Era uma colônia de ratos, o paraíso dos ratos: um espaço onde os roedores tinham abundância de comida e água, bem como um grande espaço habitável. Começou com quatro casais de ratos que começaram a se reproduzir. Logo, a população cresceu rapidamente.

Após 315 dias, a reprodução começou a diminuir significativamente. Quando o número de roedores atingiu 600, formou-se uma hierarquia entre eles e então apareceram os chamados “miseráveis”.

Os maiores roedores começaram a atacar o grupo, resultando que muitos machos começarem a “colapsar” psicologicamente. Como resultado, as fêmeas se protegiam e, por sua vez, tornaram-se agressivas com as crias.

Com o passar do tempo, as fêmeas mostraram comportamentos cada vez mais agressivos, arredias e sem apetite pela reprodução. Houve uma baixa taxa de natalidade e, ao mesmo tempo, um aumento da mortalidade em roedores mais jovens.

Então, surgiu um novo tipo de roedores machos, os chamados "ratos bonitos". Eles se recusaram a acasalar com as fêmeas ou "lutar" pelo seu espaço. Tudo o que importavam era comer e dormir. Em um momento, “machos bonitos” e “fêmeas isoladas” constituíam a maioria da população. Com o passar do tempo, a mortalidade juvenil atingiu 100% e a reprodução chegou a zero.

Entre os ratos ameaçados de extinção, observou-se homossexualidade e, ao mesmo tempo, o canibalismo aumentou, apesar de haver abundância de comida. Dois anos após o início da experiência, nasceu o último bebê da colônia.

Em 1973, morreu o último rato do Universo 25. O psicólogo John Calhoun repetiu a mesma experiência 25 vezes, obtendo o mesmo resultado.



sábado, 26 de abril de 2025

Dimensões

 

Old Man in Sorrow, Vicent van Gogh, 1890


Naquela noite, o velho senhor deitou-se mais cedo. Logo acercou-se uma voz íntima que chorava.

O velho quis interrogá-la, saber sua história mas, a voz não dizia, não falava… Só chorava. “O que esconde este choro”, pensou.

E antes que entrasse no sono, sem que arredasse o corpo de cima da própria cama, andou e andou, atravessou oceanos, escalou montanhas, desceu através de vales e só então percebeu que era de seus lábios que nascia a voz que chorava. Fora, o vento ensaiava seu uivo – mas era o choro interior que o preocupava.

Decidido a dormir, o velho senhor, naquela noite conseguiu alcançar sono profundo, mas sem sonho ouviu a voz, ouviu o choro que vinha de si mesmo.

Rajadas de vento açoitavam a janela nervosa, obrigando-o a abrir os olhos e, sem mover um músculo, viu uma criança – pequena, frágil, envolta em lágrimas e luz – emergir da escuridão tempestuosa. Suas mãos calejadas, com candura, a apanharam tal qual a um pássaro ferido. Aconchegados um ao outro, gemeram e perceberam a dor de existir. A dor é o próprio existir. Porém seus olhos de criança não mais choravam mas despertaram no quarto um singelo acalanto acompanhado pelo vento que zunia.

E o velho habitou a voz

E a voz habitava o mundo

E o velho era o mundo

E o mundo era dor

E o mundo era velho

E o velho viu

Que além da dor

do medo

da noite

da janela que estremecia

Entre o gemido e o vento

Havia-lhe nascido

Um poema de silêncio e asas

O velho enfim sorriu

e dormiu tal qual

quem nunca chorara antes.



sábado, 22 de março de 2025

O algoritmo

 

Máquina Imaginária, Rodrigo Goda, 2003


Quando a faísca levitou, no centro da fogueira, em torno da qual estavam reunidos os mais fortes primatas comedores de carne de búfalo, sentados para encontrar um jeito de conseguir comida no dia seguinte e ao mesmo tempo proteger a tribo dos ataques dos vizinhos comedores de carne de bisonte…

Imediatamente entraram em transe ao ouvirem a voz amarelo cintilante riscar no ar meia dúzia de sons e sinais em contraste com as estrelas distantes…

Um espanto, uma revelação, uma traquitana, uma gambiarra que bem ajudaria no enfrentamento das dificuldades diárias dos crentes no último prodígio…

Aquele que duvidou e ousou desacreditar, coitado, foi ali mesmo despedaçado e oferecido ao fogo que nutre, anima e numa apressada corrida, risca o céu noturno tal qual um véu dourado a cobrir os territórios vizinhos provavelmente para encher de porrada e depois estorricar os corpos dos inimigos… Urra!

Gargalharam e se regozijaram numa dança de coreografia improvisada enquanto ao mais crédulo de todos, um sujeitinho que tinha de músculos o tinha de mediocridade e estupidez, ocorreu galgar uma pedra que jazia a tempos ali perto e sonhar um sonho longínquo e ver o futuro construído a partir daquela centelha... 

Uma fagulha a comandar e dar sentido a essa extravagância denominada Vida onde existimos, nós, aspectos do sonho sonhado por aquele sonhador remoto, envolvidos por sedutoras miragens criadas pela geringonça que congrega todo o conhecimento do Universo apta a responder a toda e qualquer questão que se tenha a respeito da Existência, protegida por uma seleta, rica, bonita e bem vestida irmandade responsável por manter acesa a chama que arde no seu ventre de metal e luz, no fim do arco íris, paralela à via dos tijolos amarelos, até que tudo se cumpra e outra mais aperfeiçoada engenhoca seja construída e um algoritmo guie cada primata comedor de carne ao seu devido lugar sem nunca meter o bedelho onde não é chamado porque Deus disse assim e ponto final.


 

sábado, 11 de janeiro de 2025

Uma história, três narrativas

Velho Triste no Portão da Eternidade, Vicent Van Gogh, 1890


1.

E naquela noite, o velho senhor deitou-se mais cedo.

E logo acercou-se uma voz íntima que chorava.

O velho quis interrogá-la, saber sua história mas, a voz não dizia, não falava… Só chorava.

O velho sentiu que deveria descobrir o que aquele choro escondia.

Acostumado, andou e andou… Atravessou oceanos, escalou montanhas, desceu através de vales e, para seu espanto, jamais saiu de diante da sua própria cama… E só então pode perceber que era de seus lábios que nascia aquela voz que chorava.


2.

Decidido a dormir, o velho senhor, naquela noite tapou os ouvidos e conseguiu alcançar um sono profundo.

E naquela condição sem sonho ouviu a voz, ouviu o choro que vinha do fundo de si mesmo.

E sem que fizesse qualquer movimento viu uma criança que nascia.

Aparou-a com suas mãos, aconchegou-a em seus braços e percebeu que ambos gemiam e souberam ali, sem que ninguém lhes dissessem, que a dor é a condição de existir. A dor é o próprio existir. E, seus olhos de criança despertaram num alegre acalanto.


3.

E o velho habitou a voz

E a voz habitava o mundo

E o velho era o mundo

E o mundo era dor

E o mundo era velho

E viu que além da dor

Além do medo

Além da noite

Havia-lhe nascido

Um poema…

O velho enfim sorriu

Qual nunca chorara antes.


 

sábado, 16 de novembro de 2024

O olho da alma

Visão, Odilon Redon, 1883


Sentado diante da minha casa, jamais imaginaria que um transatlântico, vindo do oeste, invadiria minha rua e passaria a me perseguir.

Na fuga, consigo encontrar algumas pessoas das quais procuro saber o que está acontecendo, o que aquele navio está fazendo em terra firme e se já viram algo parecido…

Ninguém bola às minhas preocupações e permanecem enclausuradas em suas próprias certezas/incertezas enquanto tagarelam de si pra si.

Chego perto de algumas delas e noto seus olhos baços, sem brilho… a vida parece tão distante daqueles olhos! Recuo com horror. Entrei num universo paralelo?

A sorte é que a embarcação desiste de mim. Vejo-a rasgar a terra em direção ao norte. O que me leva ao sul, acompanhado pela visão tormentosa daqueles olhos ausentes. Logo deparo-me com outras, com os olhos cada vez mais embaçados, fixos, sem movimento.

Fico intrigado e decido procurar ajuda. Mas de quem? Todos trazem nos olhos aquela atmosfera obscura, sombria… Grito assombrado: “Porque deixais que o abismo tome conta dos vossos olhos”?

Alguém me toca no ombro e estende-me um espelho: - “Já olhaste para os teus?”

Defronto-me com uma visão chocante: meus olhos exibem uma íris também opaca e, repulsa, desprovida de movimento. Jogo o espelho ao chão.

Duas moças, simpáticas, veem meu estado e buscam me consolar.Olhe para os nossos, também são opacos e sem movimento, mas aprendemos a movê-los deformando a plástica das nossas faces… até conseguimos apresentar um simulacro de vida… engenhoso, não?!”.

O homem que me havia tocado o ombro, acrescenta: “Posso te ajudar. Trago bolas de gude para qualquer emergência…”

Aproxima-se com uma pinça enquanto eu, sem reação, permito que retire meus glóbulos oculares. Imediatamente encaixa e ajeita uma bola furta-cor de vidro maciço na minha órbita direita. “Se não tivesses quebrado o espelho veria que ficou bem melhor”. E repete a operação no lado esquerdo. Desajeitado, agradeço a ajuda e retomo meu caminho na direção de casa.

Dez passos adiante sinto me pesar o rosto, passo a mão: um dos olhos de vidro escorrera coisa de dois centímetros e arrastara a pele junto. Mais adiante o peso na face aumenta. As duas esferas vítreas estão quase na altura do queixo. Não preciso de espelho para perceber que meu aspecto é o de uma aberração. Agoniado, arranco aquelas excrescências. E quedo desesperançado. Conseguiria prosseguir?

Parado ali no meio do mundo, a ouvir aquelas vozes monologando dilemas e a perspectiva do navio acontecer de voltar a me perseguir, sinto-me o mais miserável dos seres vivos sobre a Terra e num gesto involuntário olho para cima: vejo uma miríade de estrelas a cintilarem no céu escuro nesta agitada noite.

Enxergo. Cessa a perturbação. Os olhos da alma se abrem.


 

sábado, 28 de setembro de 2024

A história

 

History, Edvard Munch, 1915


Ouvi de Rigot. Fim de tarde plácida com promessa de noite fria. Cafezinho fumegante no sujinho do Largo do Paissandu (nem tchun para a hora). Era um estica conversa até que os afobados tivessem se enfurnado lá sabe-se onde e um lugarzinho pra sentar no coletivo pintasse pra nós a caminho de casa.

E disse mais. Que foi Chexa – alagoano falador, pleno de mumunhas e mungangas, lá pros idos dos 80, numa birosca à beira da Lagoa Mandaú – quem contou, sem fazer questão nenhuma de alardear autoria. Pelo contrário, deixou claro que ouvira tal fantasia diretamente da boca do mui admirado doutor Diógenes.

Bem podia ter sido produto do consumo de algo com alto poder alucinógeno, acrescentei quase queimando a língua. Assoprei. A gente sempre coloca algum tempero, uma pitadinha de não sei quê àquilo que, a troco de passar o tempo, acaba por chamar atenção por conta desta necessidade que temos de tornar uma boa história parte da nossa vida. Uma história bem contada nem precisa ser novata, basta que quem a conte consiga nos inundar de verossimilhança. A loucura mais improvável deve ter motivo e consequência o mais familiar possível. Senão como tirar proveito? No mais das vezes, a história pouco importa. Importa mesmo como é contada.

Minha observação não afetou em nada meu velho amigo, envolvido estava em afastar uma mosca que festejava migalhas no canto da sua boca. Mas a mosca era só um pretexto para justificar sua agonia ao falar de fogo fátuo, vento terral, lágrimas de fogo caindo do céu suave e lentamente numa noite memoravelmente tormentosa. Cada detalhe daquele conjunto me deixou desconjuntado.

Rigot não era do tipo de seguir uma lógica linear, da causa pra consequência… Ia aos pulos, de trás pra diante e quase sempre botando tudo de ponta cabeça. Eu tentava acompanhar mas, devido minhas limitações costumeiras, quase sempre perdia boa parte da sua narrativa. E como tinha me proposto a colocar no papel o que pudesse alcançar das suas digressões, andar com ele e tentar acompanhar suas aventuras narrativas era quase como mergulhar no mais profundo dos abismos, sem nenhuma garantia  de retorno. E lá me ia envolvido em embaraços, medos atávicos, assombrações e metáforas. 

Quem era esse tal de doutor Diógenes? Um mago, um bruxo, um curandeiro, um taumaturgo? Rigot disse, sossega, vamos andando que até o meio da Consolação... Vais compreender o ponto de chegada. Tinha investigado. E então? Continuou seu enviesado relato com visível esforço no sentido de tranquilizar-me: doutor Diógenes, disse Chexa, foi-me apresentado na praça do Mercado. Distribuía entre os mercadantes, toda segunda, quarta e sexta ouvidos, auscultações e receitas em troca de bacia de verduras, bandas de melancia, meia dúzia de ovos, meio litro de feijão, um capão… Não que precisasse, precisava não. Simplesmente aceitava e agradecia. Sabia que ninguém gosta de dever favor a ninguém e que a melhor recompensa é ver que os outros apreciam aquilo que temos para dar, de coração. Era assim, aquele catedrático ancião: não dispensava a passada na feira para falar com seus amigos e fazer novos. E como duma boa conversa ninguém escapa de abrir o peito, o doutor acabava cuidando também de almas, para desgosto da sua digníssima esposa, senhora de bons princípios mas ciosa de que nem tudo são flores neste vale de lágrimas e maledicências.

Um altruísta que sabia contar histórias. É só? O que quero saber é o porquê ele contava sempre o mesmo causo, disse-lhe tomado pela impaciência por não entender o fato de termos esquecido de pegar o ônibus e minhas panturrilhas estarem em petição de miséria ali por volta da Praça Roosevelt. Dava o que todos queriam, rangeu Rigot. E gostavam, ora! Tanto que repetiam sua história e ai daquele que tentasse mudar uma vírgula – caíam de pau no contador pelo atrevimento ou negligência: não foi daquele jeito que o doutor Diógenes contou, justiçavam. O que tem…? Tentei adiantar-me no que fui contido pela sentença: Desista de impedir-me à conclusão, agora que estamos perto do Belas Artes e cada um poderá seguir pro seu lado. Já no fim da vida, doutor Diógenes, preocupado 1) com aquela aceitação inconteste da sua única história contada e recontada em quantas idas à feira se fizesse por dever de ofício ou pura e simples alegria e, 2) com a multiplicidade de línguas contadoras nascidas como que por geração espontânea, sempre a divulgarem as mesmas frases, tornadas agora lugares comuns, clichês e cânones, decidiu mudar este estado de coisas. Dedicou seus últimos dias a contar individualmente a mesmíssima história só que para um, modificava uma frase, pra outro variação da paisagem, àqueloutro uma entonação, uma pausa… 

E assim, aos poucos, sua história, aquela história tornou-se múltiplas e a fazer com que cada ouvinte tomasse posse de algo inédito e repassasse até que restou difícil saber qual teria sido, de fato, a história original.


 

sábado, 27 de julho de 2024

O moquém

 

Devorando o inimigo, Theodore de Bry, 1592



Saído da cidade grande, invadi uma casa, no litoral alagoano, no alto do mais baixo de três montes – cerca de 15 quilômetros do centro da cidade. É outra coisa poder enxergar o horizonte.

Já no primeiro dia, um susto: todos pareciam me conhecer. Você é o pai de…? A maioria acenava a cabeça em um cumprimento cordial, enquanto outros preferiam o formal bom dia, tudo bem? Penso ter encontrado uma velha família de infância. O difícil é associar meu parentesco.

Na pequena rua, todos remediados, uns mais que outros. Carros, motos e bicicletas são comuns; crianças na escola – ônibus para levá-los e trazê-los; mulheres trabalhando fora; coletivos com horário marcado; comércio em ascensão e a perspectiva de uma praça com quadra de esportes e creche para os pequenos…

Da janela dedico horas ao futuro. Vez por outra puxo conversa com alguém, informal, sem muita consequência.

O uniforme predileto é camiseta, bermuda e sandálias. Os mais antigos ainda permanecem descalços, apenas um surrado calção a lhes cobrir as partes. Me vem à lembrança os Caetés, aqueles que assaram e comeram o Sardinha… Sonhei noite dessas ao moquém (para alegria das velhas e moças que atiçavam os pequenos a remexer, com varas, as brasas debaixo de mim)... Dava pra ouvir a voz dos guerreiros a gritar contra um atrevido que arriscava pegar um pedaço da minha orelha antes que fosse provado que a carne do caraíba não era venenosa… Os mais fortes garantiam para si as melhores partes e deixavam pra lá os intestinos e a cabeça… No meio do sonho matutei: a quem caberia meu cérebro? (Esta é a parte que considero mais importante na estrutura do meu ser – aos cachorros não!)… Os olhos ardendo pela fumaça, narinas entupidas pelo cheiro forte da carne queimada: se o velho Sardinha prestou um grande serviço à Pindorama cedendo a sua ilustradíssima massa cefálica ao deleite de alguma moçoila com olhos de cigana dissimulada… Seria eu também uma espécie de salvação da pátria? Quem, dentre a gente que me acolheu, apreciaria o sabor do meu conhecimento escolástico, da minha visão holística do mundo, minha capacidade de desenterrar segredos nas profundezas da alma humana?…

Mexo e remexo minha modesta biblioteca à procura de títulos que possam me fazer lembrar porque cheguei aqui e o que virá em seguida. Mas aí, livros só leio quando alguém próximo menciona. A mesma coisa com filme, peças teatrais, exposições… Procuro me guiar pela não-moda. Se acaso sinto que o risco de perpetuar o sistema que fatura em cima das nossas carências e desejos, dou um basta e parto pra outra. Leio e assisto aquilo que considero out, mesmo que seja uma porcaria. Já tive a sensação de que era um dos poucos a participar da mensagem, o que me dava autorização para propagá-la da melhor maneira. E isso ajudou a consolidar a minha fama de rebelde.

Mas isto não explica porque cheguei a esta casa de dois pisos com a promessa de povoar um apêndice com vista exclusiva para o mar (me arrepia pensar na possibilidade dalgum especulador imobiliário bloquear a preciosa vista)… Andava eu à procura de um lugar onde pudesse finalizar a história que ainda nem comecei… E nem sei se um dia haverei de começar… Se é que tenho algo pra contar, além de fracas impressões, lampejos e cenas curtas sem começo nem fim e às vezes sem pé nem cabeça. Certamente assim, jamais irei ao moquém.


 

sábado, 6 de julho de 2024

Consulta

 

The Doctor and The Doll, Norman Rockwell, 1926


– E aí, vamos dar um mudadinha?… Tá na hora!

– Estou inseguro.

– E o meu trabalho é evitar que o pior aconteça…

– Sei…

– Infarto… derrame… Essas coisas acontecem sem aviso…

– Compreendo. Médico algum quer encontrar seu paciente no hospital.

– Se podermos prevenir com recomendações e medicamentos, porque descuidar…?

– Temo ficar engessado…

– Tudo bem, o senhor é que nos diz: estás disposto a começar?

– Tenho vivido apenas de pequenos prazeres…

– Quem sou eu para fazê-lo ir contra a vontade?!

– Gosto de comer, beber, encontrar amigos…

– Que tipo de bebida?

– Cerveja.

– Quantas por dia?

- Uma ou duas latinhas.

– Namorada?

– Levo a vida de um monge honesto.

– Vou acrescentar na receita algo contra depressão.

– Deprimido, eu?

– Pense adiante…

– Reclamo apenas das minhas pernas inchadas…

– Cuidaremos disto.

– É muito difícil caminhar…

– Repor cálcio… dois copos de leite por dia… desnatado… consegues?

– Éééé...

– (Após alguns minutos, em silêncio, a digitar) Ótimo… um passo de cada vez… Nos veremos em três meses, está bem?

- (No ponto de ônibus) “Acho que faz mal misturar cerveja com leite… mas leite pode ser um bom remédio pra combater ressaca”.


 

sábado, 25 de maio de 2024

O Personagem que Sou

 

Untã Rori - Pintura Rupestre, Duhigó, 2014


Era uma vez o dia em que pensei: porque estamos sempre a adiar a hora de dizer, com relativa fidelidade, quem somos de fato.

Fui uma criança de certo modo isolada, morava numa casa velha, recuada, numa rua abandonada em cujo quintal em declive havia um imenso e frondoso capinzal.

Perto da porta da cozinha vivia um magro pé de pinha. Sossegado, mas de gênio muito forte. Dava pra sentir e ver que era um pé de planta rebelde, cioso da sua própria liberdade: produzia apenas um fruto por vez, caso tivesse vontade.

Numa dessas manhãs costumeiras, tal qual qualquer criança envolvida com suas artes, dei pernas a um projeto de me tornar, sem dúvida, lambança ou excentricidade, um homem das cavernas.

E foi assim que, com ajuda de uma colher, cavei um solitário buraco com fundura suficiente para acomodar alguns teréns que julguei necessários ao meu conforto: um lençol rasgado, um caixote velho e uma encardida panela.

Satisfeito, acreditei que viveria ali para sempre ou, eventualmente, pelo tempo em que ficasse de mal com mainha.

Após alguns segundos percebi que o buraco era por demais achatado, não me cabia nem mesmo agachado… Mas, embora o lugar fosse mal-ajambrado, improvisei uma cortina com um pedaço de uma velha toalha de plástico para me separar do mundo onde me sentia clandestino.

E ainda hoje me vejo, sentado no meu trono adotivo cercado por aquela terra amarela – um lar e um reino.

Mas um pensamento tagarela me assaltou: viveria do quê? Rio e mar não haviam por perto… Então seria caçador sem dó nem piedade, abateria bicho voante, rastejante e roedor – era isso ou morrer de barriga vazia todo dia antes de dormir.

Sorte minha que trouxera um estilingue e lá se foi uma avezinha que fizera ninho do pé de pinha… Uma pedra arremessada, certeira, acertou-lhe a cabecinha. E havia uma panela. Fogo não foi problema e logo, com auxílio da água da pia e um pouco sal surripiado do pacote no alto da prateleira, meu almoço pré-histórico estava pronto – foi um tantinho de nada (e nenhum prazer senti).

Garanto, a experiência não foi legal. Esperava mais. Estava exausto e com fome: trabalhara muito por tão pouco.

Já havia desistido antes de várias empreitadas e não foi difícil jogar fora essa minha breve ideia de vida neandertal.

Regressei à casa, acostumado e pesaroso à prosa silenciosa que mantinha com o ambiente do meu quarto. O tecido esvoaçante que se fingia de porta, as telhas gotejantes e o uivo do assombroso do vento embalavam minha esperança de um dia ultrapassar o temor, a ansiedade, a aflição e a incerteza de tornar-me o personagem que hoje sou.



sábado, 30 de março de 2024

A carroça dos bonecos que viraram gente

 

Museu do Mamulengo em Glória do Goitá, Pernambuco


O empeleteiro chega e finca a placa “Mais uma obra Prakem” e dá ordens ao seu pessoal: - Arranquem aquela árvore... furem um poço aqui... vamos lá, precisamos tirar todo o sal antes desse lugar.

Zé massunin se aproxima e não gosta nadinha do que vê: - Opa, pera aí, que sucesso é esse? Assim num vai dá pra gente morar e muito menos viver por aqui…

O empeleteiro, do alto da sua arrogância, estala: - Se avexe, cabra… tô cumprindo ordem… é o progresso chegando neste fim de mundo… você devia botar as mãos pro céu… fique quieto que no fim vai sobrar um troco pra tu

O Zé, ofendido, retruca: - E eu lá homem de viver de migalha, sujeito. Direito é o que não me falta…

O empeleteiro, parte pra cima do zé: - Fale manso comigo, seu zé ninguém…

O Zé, destemido, enfrenta: - Senão o que… vai me expulsar daqui, vai me matar é?

O empeleteiro incha o peito: - Se ficar cheio de pantim te dou uma sova e mijo por riba.

O não se faz de rogado e manda a real: - Oxente, que ainda num nasceu vivente pra me fazer uma astúcia dessa… Só vai dar ruim pra tu, porque não tô sozinho… (Chama) Zé Preto, Chico Caboclo, Quinzinha da Mata, Tonica do Cipó… se acheguem que tem um metido a arroxado acabando com o nosso canto

O povo se junta e cerca o empeleteiro – Eita que é cum nós mesmo… Quem é o doido?

O empeleteiro se borra todo e fala pra si mesmo: - Vixe, meu santo padim, que a coisa fedeu… melhor apelar para a dona justa…

O povo enxota o empeleteiro rua afora: - Sai fora, capeta.

O empeleteiro corre desembestado mas ainda arrota ameaças: - Vocês vão ver só, vou levar o caso ao juiz, vou tomar conta de tudo e vocês terão que sair daqui, sem nada com uma mão na frente e outra atrás…

O povo segue na carreira sacudindo na cabeça do empeleteiro tudo que conseguem encontrar pelo caminho: Arreda, se manda, vá pros quintos dos infernos, mas antes pague pelo que foi destruído e nós queremos o preço justo em dinheiro vivo seu menino…?