sábado, 31 de maio de 2025

Considerações Finais

 

Limpando a prataria, Armando Vianna, 1923


Não me perguntem quem fez a denúncia. Talvez alguém da casa, parente, vizinho – alguém com a consciência dolorida. Talvez alguém ferido em seus interesses ou sentimentos e, por isso mesmo, tenha aflorado, em si, desejos de vingança. Bem, pouco importa.

O fato é que agentes do Ministério do Trabalho, devidamente acompanhados por policiais militares, num certo dia, tocaram a campainha da casa de número 1500 de uma das alamedas mais limpa, bonita e cheirosa do condomínio Mirante dos Pavões e esfregaram na cara dos donos (uma dupla de profissionais liberais com raízes fincadas em velhos e decadentes cafezais) um mandado de libertação da doméstica Osmarina Dias dos Santos, mantida em situação de trabalho escravo por quarenta e oito anos.

Cheguei aqui com 13 anos… lavava, passava, cozinhava, arrumava a casa e cuidava das crianças… cuidei dos pais, dos filhos, dos netos e agora cuidava de um bisneto… três gerações foram alimentados com o leite dos meus peitos e até hoje o suor do meu rosto e o cansaço das minhas pernas e braços sustentaram esta família das 5 da manha até às 10, 11 horas da noite… quando os patrões iam pras festas eu não dormia, tinha que ficar acordada até eles chegarem e aí emendava… tinha que preparar o café da manhã, o lanche pras crianças levarem à escola, o almoço e nessa pisada ficava acordada mais de um dia… não saía, não passeava, não tive filhos, nunca mais soube dos meus parentes, cheguei até esquecer o meu nome porque aqui todos só me chamam de “preta”… acabei me acostumando sob a promessa de que um dia me levarem para conhecer a Disney… jamais pensei que poderia viver a minha própria vida”.

Ali mesmo na sala de estar, largamente decorada com motivos coloniais, dois agentes calcularam os valores devidos à vítima. O total da indenização, mais multas e juros, permitiria que ela vivesse, com folga, o restante dos seus dias onde quer que fosse. Outros dois não tiveram qualquer dúvida ao enquadrarem a família no artigo 149 do Código Penal e solicitarem o arresto dos bens do casal para cobrir todos os encargos devidos.

Os olhares do casal fuzilaram Osmarina com granadas de concussão e imaginaram rupturas de tímpanos e hemorragia cerebral seguidos do espalhamento dos membros e órgãos pelas ruas da cidade sendo esmagados pelos pneus do impassíveis automóveis cujos proprietários solicitariam, do poder público, compensação financeira pelos danos sofridos à propriedade privada.

No dia da audiência, o juiz, antes do bater o martelo e sentenciar aquela família temente a Deus a oito anos de prisão, além do pagamento de tudo que deviam à doméstica, cedeu a palavra à vítima para que fizesse suas considerações finais.

A moça foi de uma parcimônia exemplar: “Queria apenas que eles me agradecessem por tudo que fiz”.

E eu, que acompanhei tudo isto perplexo, com uma tremenda dor de estômago, pensei: “Osmarina será algum dia livre de fato”?



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