sábado, 27 de fevereiro de 2021

O grande amor da minha vida

 

Cabot Street Cinema, Hiroshi Sugimoto, 1978


Eu moraria dentro de um cinema. Sem problema, teria uma vida sentimental plena dentro de um.

Na minha pequena adolescência, uns dos meus primeiros amores me levou para assistir Príncipe Valente e passou o filme inteiro a apertar a minha mão: fiquei apaixonado;

A primeira vez que assisti a Paixão de Cristo, senti um choque tão grande que tapei os olhos com as mãos... Hoje, traumatizado, nunca chego perto dos filmes da Sessão Terror;

Marcelino Pão e Vinho foi o primeiro filme que chorei copiosamente e não me senti envergonhado;

O poeira da cidade onde cresci chamava-se Cine Clube. Tinha uma fachada toda azul e as poltronas (umas 100) eram duras de doer o cóccix. Na parte superior funcionava a Rádio Clube, onde jamais nos cansaram de tocar os Beatles. Foi neste cinema pulguento que vi (e gostei) Burt Lancaster, Claudia Cardinalle e Alain Delon numa Itália que um dia pensei que conheceria. Fellini me mostrou muito mais daquela gente que busquei imitar em gestos e gostos… mas quando assisti Zorba, o Grego, com Irene Papas e Anthony Quinn, definitivamente me decidi pela Grécia;

Iniciado em namoro no escurinho do cinema, com o tempo passei a escolher filmes meeiros para levar a namorada, apenas para não ter que perder o enredo na tela;

Na minha grande adolescência adorava frequentar um dos velhos cinemas do meu bairro. A sala tinha um nome incrivelmente sugestivo: Cine Universo. E fazia jus. Havia uma cúpula retrátil, que em noites de tempo bom, sem chuva, abria-se como uma dádiva sobre nossas cabeças - o que permitia que assistíssemos a fita ao mesmo tempo que perscrutássemos as estrelas. Havia também uma imensa e pesada cortina que só abria após três badalos fortíssimos: dica para que começássemos a assoviar e a enxotar a ave símbolo da Condor Filmes para que alçasse voo… Depois então, era só silêncio... cortado por gargalhadas, gestos de descréditos e/ou aplausos com as peripécias na tela;

Uma vez, num grande cinema, em dia de ingresso grátis, comecei a conversar com dois irmãos que estavam na fila da frente... falei que cinema deveria ser de graça pra todo mundo, todo dia. Porém só poderiam entrar pessoas que estivessem pelo menos calçadas com um chinelo e aí então reparei que os dois estavam descalços;

Um dia, um bom amigo me ensinou como entrar no cinema sem pagar: esperar a saída de uma sessão e entrar caminhando de costas. Nunca testei a fórmula, acho que ele também não;

Minha grande decepção foi ir assistir ao filme O Espantalho e minha companhia, com sua volúpia beijoqueira, não me permitiu assistir… depois que nos separamos nunca mais quis saber de ver este filme;

Experiências gratificantes nunca me faltaram. Sempre preferi sentar nalguma poltrona do centro da sala para apreciar as maravilhas que a chamada sétima arte me proporcionava. Saía da sala, sempre, carregando uma tremenda saudade;

Monteiro Lobato, num conto sobre o mundo pré-histórico, me apresentou a televisão (que só consegui conhecer aos 11 anos). Amei, mas de cara percebi que jamais me transformaria num amante;

Agora tenho streaming, curto tudo sozinho, na solidão do meu computador... é legal mas, não tem muita graça;

O grande amor da minha vida tem sofrido muito com o tempo, seu vigor tem desaparecido juntamente com os filmes de Chaplin, Buster Keaton, os seriados de Nioka, Flash Gordon, Fantasma, Jim das Selvas, Tarzan, os musicais da Metro, as chanchadas da Atlântida, Jerry Lewis, Elvis Presley, Cantinflas, os Bang-bang à italiana, James Bond, Franco e Ciccio, o cinema da “boca”, Terense Hill (Mario Giuseppe Girotti) e Bud Spencer (Carlos Pedersoli) e os inúmeros filmes de arte italianos e franceses que assistia só pra cumprir tabela porque, em geral, não entendia nadica de nada mas me permitia sair do cinema a repetir frases ao acaso, vivenciar emoções e acreditar que viver poderia ser uma obra de arte.


Um comentário:

  1. Que beleza! Fez reviver todas as experiências que tive nos cinemas da minha vida.

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