sábado, 7 de dezembro de 2019

o paraíso visto da esquina



La Strage degli Innocenti, Giotto, 1320




porque te chamas
paraisópolis
se teu nome é massacre?

tu, diariamente cuspida
xingada, pisoteada
tratada à base de balas, bordoadas e ração
sonho emprestado, repressão…
por que te atreves, classe, a exercitar
o negado direito à alegria?

shiu
silêncio, caluda
não vês que amanhã é dia de branco
que te esperam as lotações, o cartão de ponto
e o sorriso para câmeras que aguardam e interpretam
diligentemente
o formato do teu rosto
os trejeitos da tua língua
a cor da tua pele
o corte do teu cabelo
o cheiro da tua roupa… oh, modelo desmerecido
consumidor ilegal de vida, não vês
que nada tens de original, a não ser essa difamada vontade
de seres o orgulho de alguém?
(mesmo que não haja mais nenhum alguém
mesmo que nunca tenha havido qualquer ninguém
que se importe com teu grito rouco
entalado na garganta
de cada um que assiste
teu sangue tingir as ruelas irregulares
da tua indesejável existência)

oh, absurdo modo de viver
nesse teu paraíso infernal
sublime (por ser humano)
e triste (por ser forçado)
com antros imemoriais comparado… pois é
assim te justificam os que exigem tua defecção,
teu sumiço, a dispersão dos teus átomos...
é que eles temem pois os teus cantos
teus assombrados becos
teus labirintos escuros
as fogueiras dos teus sabás
as sombras das tuas noites de tambores
e teus ais ancestrais

sob os paus-de-fogo que esvoaçam
os edifícios que cintilam
         e molduram a tua clausura
olhe bem, eis os teus,
os teus próprios
fardados
pais, irmãos, tios, primos, cunhados…
nauseados
furibundos
danados com a tua inquietude
e a temível possibilidade do teu riso, do teu gozo,
(deus nos livre e guarde de tal ofensa)
deixar escapar o gênio da cultura
e torne popular e digna a tua história

oh, paraísópolis
que preço pagas
por tal sonho mau
pois ao sonhares
deixaste de perceber que és tu o sonhado
no pesadelo do teu inimigo, teu cruel desigual



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