sábado, 22 de dezembro de 2018

sei que devo salvar o mundo


A boy with pipe, Pablo Picasso, 1905



não sou assim um fã da infância
a gente tende a mistificar esse tempo
porém
hoje digo que não fui de todo infeliz...
passei
claro
por adultos horrorosos
gente sem alma
doentia
medrosa
incapaz de afeto
gente com uma perspectiva pequena
mesquinha
gente sem qualquer generosidade
mas também conheci seres belos
bonitos
seres limpos
tão puros quanto um campo de bambolinas
nascidas às margens de um esgoto que corria a céu aberto
no infinito da minha infância
eis minha primeira visão do amor
e digo que é doce perceber o amor
divino é aprender a amar
o amor que passa longe
das palavras bonitas
das frases poéticas
típico amor
atitude
atitude de quem faz da lama
um adorno, uma capa
uma arma
uma armadura
reluzente

pois é… desse jeito
é que fui ao mundo
eu, esse guaiamum
que aprendeu a jogar gude
empinar pipa
rolar pião
e buscar no carinho das meninas
a razão
e o fato de saber de que não há gosto
nenhum
em ser triste
ainda mais quando se é criança
e começa a aprender
a percorrer cada canto da sua cidade
qual um rei em seus domínios
sem medo
da sina que nos obriga nascer
no lugar que não escolhemos… mas destina em nós
superior prazer
em desafiar autoridades… ah, meus colegas bonitinhos
tão rosados
rivais meus
maiores e mais fortes
desculpem-me por tê-los feito sacos das minhas pancadas
de todas as minhas pancadas
ademais
vocês sempre estiveram do outro lado da linha do cuspe
que eu tenho traçado no chão
foi mal
eu só queria fazer graça pras meninas
eu só queria fazer
a mulher gostar de mim (e ainda quero)
e por isso me fingi de maioral pras moças do 'magasapo
todas aquelas
loiras negras ruivas índias morenas
todas que me acolhiam
que me abraçavam
e me levavam pro cinema
e apertavam minha mão
como se eu fora seu príncipe encantado
ai de mim, Zélia – minha doce maria-sem-vergonha
minha linda, minha primeira linda
que me deste o privilégio de vê-la nua
às sete da noite
quando o movimento na casa ainda não tinha começado
e depois
ainda me abençoaste com aquela tarde
com teu banho na gamela
e eu empoleirado no pé de manga
qual ave no paraíso
tu, benquista, me flagraste
e fizeste de mim um anjo fabricado na tua perfumada miséria
no teu roteiro de alívio
tudo graças a deus
santos e anjos todos nós
crentes na redenção das almas
na remissão dos pecados e na felicidade e amém…
ah, Zélia, quanto te amei

mas há uma turma que evito, minha linda
uma turma que escapo
que não desejo que conheças
uma turma que não faz parte da nossa festa
uma turma que ferra com a nossa liberdade
padres, putos, futebolistas fardados
heróis de meia tigela
gente metida a besta
esse turma fez de mim
um meio menino-homem, um sujeito esquisito…
e paro
antes que repares em minhas lágrimas
mas oh não te avexes
que eles jamais destruirão o quebra-cabeça que me destinaste:
sei, por ti, apenas, que devo salvar o mundo, nosso mundo
um campo colorido incrustado em minhas retinas



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