sábado, 21 de maio de 2016

Um amor de menina


Love, Peter Blake, 1991


O propósito, é preencher o oco de sentido


É cedo… Ele ainda não deve ter feito a barba. Costuma tomar café antes de ir pro banheiro. Adoro suas manias… O jeito que se ensaboa… Contemplando cada pedacinho do corpo com o toque das suas mãos e dedos justos e suaves. Com justo quero dizer, na medida – não são grandes nem pequenas; nem fina nem grossa mas são suaves que nem pele de neném bem tratado. Ele usa cremes… Tem uma prateleira só pra eles. Depois do banho, quente e demorado, é uma festa de capricho… Três toalhas brancas, daquelas bem felpudas (uma pequena para a cabeça, uma média para o tronco e uma grande da cintura pra baixo), que bem podia aparecer em qualquer revista de moda. Adoro… Adoro o jeito como penteia o cabelo, ajeita a gravata… Adoro o jeito como assobia nossa música predileta e sai brincando com as chaves do carro…

Não vou ligar. Ele sabe que aguardo, que tenho paciência. Ele sabe que gosto que se prepare, que use seu melhor perfume, que não tenha pressa em escolher a camisa, a calça, os sapatos, as meias… Acho lindo que tenha vaidade… É o que mais gosto nele… O cuidado com a aparência e aquele jeitinho todo especial de adivinhar meus pensamentos antes mesmo que eu pense. Que nem daquela vez que me esperou com aquele monte de frutas e o vinho que a gente tanto gosta… Foi, com toda certeza, a melhor noite da minha vida… Um sonho.

Hoje é o meu dia. Ele sabe. Desde que ficamos noivos, combinamos de se encontrar um dia da semana que nem dois desconhecidos. Para ver até aonde a gente vai. Deus me livre da rotina depois do casamento. Me dá comichão só de pensar. Mas agora não tenho porque ficar ansiosa. Vou deixar pra ficar ansiosa quando ele me disser que é dia da gente conhecer o nosso futuro apartamento. Ele que está construindo… Não fica no melhor mas, pelo menos, está num dos melhores bairros da cidade. É tão bonitinho ele cuidando dos detalhes… Tudo de primeira e exclusivo. Gastar dinheiro com decorador pra quê? Não vejo a hora dele me apresentar aos criados como a dona da sua vida…

Se segura, sua boba! Cuida de parecer uma dessas estudantes de universidade. Finja que está de férias. Isso, assim, bem atraente… Voluptuosa. Que palavra gostosa. Voluptuosa. Me arrepio toda só de pensar ouvir isso saindo da boca dele. Mas não pensem que sou gorda não. Ele não gosta. Vive pedindo pra eu não descuidar da silhueta. Não desvia, presta atenção: Quando ele surgir na esquina finja que está perdida, chegue bem devagar perto dele, peça informação sobre alguma atração turística, um lugar bonito de se visitar… Dê asas a conversa, peça conselhos sobre onde ir… Ouse um pouco mais: peça pra ele tirar algumas fotos suas no meio do tráfego em poses ingênuas e sensuais… Talvez o melhor seja logo simplesmente tropeçar e cair… Cair nos braços dele, é claro. Braços que quando me sustentam sinto que sou mais leve que uma pena, mais leve que o ar, mais leve que todos meus pensamentos… Nos seus braços dispenso o mundo e tudo o mais… Nos seus braços parece que nasço de novo num paraíso só da gente, onde todos os meus desejos foram, são e serão satisfeitos pela ternura desse meu amado e eterno amante…

E quando as crianças, Aurélia e Miguel – ela a cara dele e ele a minha cara – pedirem uma história para dormir, não serei eu apenas a contar dos nossos sonhos e esperanças… Ali, ao nosso lado, Carlos Henrique permitirá que sua voz grave preencha cada canto, conserte cada erro meu de pronúncia e encontre significados que nunca imagino que possam existir e abra espaço na nossa imaginação até os limites do infinito… Que estranho pensar assim… Mas perto dele sou capaz de tudo.

Ah, Carlos Henrique, meu astro… Não é atoa que tens nome de personagem de novela… Deus te fez e jogou a forma fora. Às vezes me pergunto se mereço tanta felicidade e logo respondo sem pensar duas vezes: mereço sim. Mereço isto e muito mais… Ui, parece que é ele… Não, o carro dele não é desta cor e ele tem muito mais cabelo e os olhos são verdes… E os dentes brancos que nem flor de lírio… Detalhe, ele jamais usaria esse monte de fitinhas do Senhor do Bonfim enfeitando o espelho retrovisor.

– Aí, fofinha… Sai por quanto o programa?  


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