Love, Peter Blake, 1991
O
propósito, é preencher o oco de sentido
É
cedo… Ele ainda não deve ter feito a barba. Costuma tomar café
antes de ir pro banheiro. Adoro suas manias… O jeito que se
ensaboa… Contemplando cada pedacinho do corpo com o toque das suas
mãos e dedos justos e suaves. Com justo quero dizer, na medida –
não são grandes nem pequenas; nem fina nem grossa mas são suaves
que nem pele de neném bem tratado. Ele usa cremes… Tem uma
prateleira só pra eles. Depois do banho, quente e demorado, é uma
festa de capricho… Três toalhas brancas, daquelas bem felpudas
(uma pequena para a cabeça, uma média para o tronco e uma grande da
cintura pra baixo), que bem podia aparecer em qualquer revista de
moda. Adoro… Adoro o jeito como penteia o cabelo, ajeita a gravata…
Adoro o jeito como assobia nossa música predileta e sai brincando
com as chaves do carro…
Não
vou ligar. Ele sabe que aguardo, que tenho paciência. Ele sabe que
gosto que se prepare, que use seu melhor perfume, que não tenha
pressa em escolher a camisa, a calça, os sapatos, as meias… Acho
lindo que tenha vaidade… É o que mais gosto nele… O cuidado com
a aparência e aquele jeitinho todo especial de adivinhar meus
pensamentos antes mesmo que eu pense. Que nem daquela vez que me
esperou com aquele monte de frutas e o vinho que a gente tanto gosta…
Foi, com toda certeza, a melhor noite da minha vida… Um sonho.
Hoje
é o meu dia. Ele sabe. Desde que ficamos noivos, combinamos de se
encontrar um dia da semana que nem dois desconhecidos. Para ver até
aonde a gente vai. Deus me livre da rotina depois do casamento. Me dá
comichão só de pensar. Mas agora não tenho porque ficar ansiosa.
Vou deixar pra ficar ansiosa quando ele me disser que é dia da gente
conhecer o nosso futuro apartamento. Ele que está construindo… Não
fica no melhor mas, pelo menos, está num dos melhores bairros da
cidade. É tão bonitinho ele cuidando dos detalhes… Tudo de
primeira e exclusivo. Gastar dinheiro com decorador pra quê? Não
vejo a hora dele me apresentar aos criados como a dona da sua vida…
Se
segura, sua boba! Cuida de parecer uma dessas estudantes de
universidade. Finja que está de férias. Isso, assim, bem atraente…
Voluptuosa. Que palavra gostosa. Voluptuosa. Me arrepio toda só de
pensar ouvir isso saindo da boca dele. Mas não pensem que sou gorda
não. Ele não gosta. Vive pedindo pra eu não descuidar da silhueta.
Não desvia, presta atenção: Quando ele surgir na esquina finja que
está perdida, chegue bem devagar perto dele, peça informação
sobre alguma atração turística, um lugar bonito de se visitar…
Dê asas a conversa, peça conselhos sobre onde ir… Ouse um pouco
mais: peça pra ele tirar algumas fotos suas no meio do tráfego em
poses ingênuas e sensuais… Talvez o melhor seja logo simplesmente
tropeçar e cair… Cair nos braços dele, é claro. Braços que
quando me sustentam sinto que sou mais leve que uma pena, mais leve
que o ar, mais leve que todos meus pensamentos… Nos seus braços
dispenso o mundo e tudo o mais… Nos seus braços parece que nasço
de novo num paraíso só da gente, onde todos os meus desejos foram,
são e serão satisfeitos pela ternura desse meu amado e eterno
amante…
E
quando as crianças, Aurélia e Miguel – ela a cara dele e ele a
minha cara – pedirem uma história para dormir, não serei eu
apenas a contar dos nossos sonhos e esperanças… Ali, ao nosso
lado, Carlos Henrique permitirá que sua voz grave preencha cada
canto, conserte cada erro meu de pronúncia e encontre significados
que nunca imagino que possam existir e abra espaço na nossa
imaginação até os limites do infinito… Que estranho pensar
assim… Mas perto dele sou capaz de tudo.
Ah,
Carlos Henrique, meu astro… Não é atoa que tens nome de personagem de novela…
Deus te fez e jogou a forma fora. Às vezes me pergunto se mereço
tanta felicidade e logo respondo sem pensar duas vezes: mereço sim.
Mereço isto e muito mais… Ui, parece que é ele… Não, o carro
dele não é desta cor e ele tem muito mais cabelo e os olhos são
verdes… E os dentes brancos que nem flor de lírio… Detalhe, ele
jamais usaria esse monte de fitinhas do Senhor do Bonfim enfeitando o
espelho retrovisor.
–
Aí, fofinha… Sai por quanto o programa?
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