Pelourinho, J.B.Debret, 1827
“A injustiça que
se faz a um é uma ameaça que se faz a todos”.
Frase atribuída ao Barão
de Montesquieu (1689-1755)
“Muitos eram os
privilegiados
isentos de conhecer
as argolas do pelourinho
e a sua inseparável
chibata.
Os homens de sangue
azul,
o clero, os juízes,
os altos administradores,
os oficiais de
tropa, os vereadores e seus filhos,
escudeiros e pagens
a serviço de fidalgos
não recebiam
açoites”.
O Rio
de Janeiro no tempo dos Vice-Reis, Luís Edmundo, 1938
Varejão nasceu zé no
eito do Engenho Cafundó, na beirada de Viçosa, no agreste alagoano.
O patriarca Nico orgulhava-se do “demos” no nome mais por força
da lubricidade (para incômodo da igreja e tormento da Donana) do que
por senso de humanidade. A noção de coletivo ou a palavra povo era
algo que não encontrava guarida no seu vocabulário. Dogmático,
dizia de boca cheia que não viera ao mundo pra dar camisa pra seu
ninguém. Povo era os cangalhos e ria a bandeiras despregadas. Lá
nos cafundós ou o sujeito merecia ou desmerecia. E pelo gingado da
moenda era mais fácil o sertão virar mar que alguém adquirir
mérito aos olhos do coronel, acostumado que era a separar os homens
de acordo com seus próprios e eternos interesses. Mas o mundo dá
tantas voltas que um dia o que é preto num outro pode amanhecer
branquinho que nem capucho de algodão. Tudo depende da oração e de
onde parte a benção.
Aconteceu que, numa
noite, o velho voltava da casa de Noca (mameluca cheia de dengos e
remelexos) quando, na travessia da pinguela do toba, o cavalo
enganchou um casco numa saliência, quis empinar, escorregou e tombou
feito jaca mole. O coronel bateu com a cabeça num mourão recostado
e quase foi às falências não fosse Varejão retirá-lo de dentro
do córrego. Digo que não o fez por comiseração mas por conta do
resultado frio de um cálculo. Vontade bem que teve mas… Acostumado
a carregar grande parte do mundo nas costas (lá onde a chibata
escreveu dúzias de mal traçadas linhas) ergueu aqueles cento e
tantos quilos de vontade imperiosa e ganhou o rumo da casa grande a
pedir pra todos os santos que o velho não batesse as botas. Não
desejava continuar funhenhado pro resto da sua miserável vida. E não
demorou pro coronel se recuperar e exigir satisfação.
Pela mãe de deus que não
mentiria. Sim, fugira… Já estava a meio caminho da liberdade
quando ouviu o relincho do cavalo e não deixou de sentir pena do
sinhozinho, ao vê-lo ali, sem sentidos, quase afogado em sangue e
lama, com a perna presa no estribo sob o peso do animal. Nem os
bichos brutos da natureza gostam de ver sofrimento, disse em meio a
duas lágrimas atrevidas. O velho sentiu uma brisa roçar-lhe os
pelos e pela primeira vez na vida pensou sentir algum gosto por
alguém que não fosse motivado por luxúria… Ordenou que fossem
aplicadas apenas quarenta e nove das cinquenta chibatadas
costumeiras. Conhecedor do gênero, atinou que encontrara um êmulo.
E derramou, de leve, graças sobre a carapinha. Preciso era fazê-lo
dever. Primeiro, chamou-o por nome, registrado em cartório o que
melhor lhe assentou à índole. Depois, ao pedir um ou outro serviço,
que reputava de confiança, fazia com que o zé, comesse bons bocados
em suas mãos. Varejão se fazia de mouco. Nunca foi tão fácil colocar o
dedo na ferida dos outros e disto tirar proveito. Pra quem nunca
havia passado de borrão, chegar a traço é apoteose. Fazer-se
usado, cevava o sonho de liberdade e quem sabe um torrão pra chamar
de seu.
Não tardou outra
urgência lhe cair no colo. Nas bandas do Rio Largo, outro zé
endossou um documento de posse que, convenientemente declarado falso
pelos bacharéis da situação, desencadeou uma onda revisionista de
todos os títulos de propriedade locais. Foi um deus nos acuda.
Centenas de desafetos e de indiferentes tiveram seus panos de bunda
confiscados e arrolados na conta dos liberais. O coronel, na
qualidade de cabeça da pátria, gritou a pleno pulmões chegada era
a hora de botar nos eixos a nação. O outro zé alegou que no seu
nem o divino metia a mão, que peitaria qualquer tribunal e o que é
do homem o bicho não come, tamanha era sua convicção da legalidade
do seu ato. Mas ora, se em rio que tem piranhas jacaré nada de
costas, faltou combinar com os tártaros. Foram tantos os malfeitos
que imputaram ao zé que até as paredes se indignaram. Virou peleja
de cordel. É que em terra onde não existem argumentos mas sentenças
de antemão, a justiça já vem prontinha e, como ninguém suporta
enxaqueca, engole-se o caldo com os olhos, ouvidos e narizes tapados.
Afinal, é mais um zé… É sempre um zé. Então, “vai
lá, Varejão. Tu que um dia foi também zé. Tome cá
um sobrenome e muita munição. Parta pros tabuleiros e
coroe tua carreira. Aplique um corretivo exemplar, uma punição
inédita, um castigo digno de figurar na lembrança.
Seja minha mão direita, pesada tal e qual as de uma vintena de
capitães-do-mato”.
Encarnado num abraão
alucinado, num messias apoplético, Varejão moveu vales e montanhas, mudou rios de lugar,
soterrou cidades, incendiou pastagens, tudo para encontrar seu homem, em casa, pejado de males. Pensou-se que ninguém em sã consciência
seguiria com aquela antipatia. Decidido a não amolecer a mão, a não
ceder um dedo sequer, botou sua roupa de domingo e partiu pro
carnaval. Manietou o condenado e o arrastou pela praça principal,
apesar das intercessões e dos pedidos de clemência. Investido de
uma ira além homem, tal qual um tsunami, um apocalipse, um final dos
tempos não escrito, impôs ao outro uma via dolorosa, semelhante
àquela que várias vezes cumpriu, a caminho do pelourinho, um
castigo tão fora de propósito que, quando chegou ao pé da casa
grande, um comensal exclamou sua perplexidade: Benza deus,
coronel: Esse Varejão é mau! O
pau-de-dar-em-doido bateu
dois dedos sujos na aba do chapéu, retesou a corda de embira e
prosseguiu, finalmente conciliado com sua essência. Finalmente
se livrara do seu zé.
Beleza de conto, beleza de linguagem!
ResponderExcluir