sábado, 28 de dezembro de 2013

O homem que matou o zé.



Pelourinho, J.B.Debret, 1827



A injustiça que se faz a um é uma ameaça que se faz a todos”.
Frase atribuída ao Barão de Montesquieu (1689-1755)



Muitos eram os privilegiados
isentos de conhecer as argolas do pelourinho
e a sua inseparável chibata.
Os homens de sangue azul,
o clero, os juízes, os altos administradores,
os oficiais de tropa, os vereadores e seus filhos,
escudeiros e pagens a serviço de fidalgos
não recebiam açoites”.
O Rio de Janeiro no tempo dos Vice-Reis, Luís Edmundo, 1938



Varejão nasceu zé no eito do Engenho Cafundó, na beirada de Viçosa, no agreste alagoano. O patriarca Nico orgulhava-se do “demos” no nome mais por força da lubricidade (para incômodo da igreja e tormento da Donana) do que por senso de humanidade. A noção de coletivo ou a palavra povo era algo que não encontrava guarida no seu vocabulário. Dogmático, dizia de boca cheia que não viera ao mundo pra dar camisa pra seu ninguém. Povo era os cangalhos e ria a bandeiras despregadas. Lá nos cafundós ou o sujeito merecia ou desmerecia. E pelo gingado da moenda era mais fácil o sertão virar mar que alguém adquirir mérito aos olhos do coronel, acostumado que era a separar os homens de acordo com seus próprios e eternos interesses. Mas o mundo dá tantas voltas que um dia o que é preto num outro pode amanhecer branquinho que nem capucho de algodão. Tudo depende da oração e de onde parte a benção.

Aconteceu que, numa noite, o velho voltava da casa de Noca (mameluca cheia de dengos e remelexos) quando, na travessia da pinguela do toba, o cavalo enganchou um casco numa saliência, quis empinar, escorregou e tombou feito jaca mole. O coronel bateu com a cabeça num mourão recostado e quase foi às falências não fosse Varejão retirá-lo de dentro do córrego. Digo que não o fez por comiseração mas por conta do resultado frio de um cálculo. Vontade bem que teve mas… Acostumado a carregar grande parte do mundo nas costas (lá onde a chibata escreveu dúzias de mal traçadas linhas) ergueu aqueles cento e tantos quilos de vontade imperiosa e ganhou o rumo da casa grande a pedir pra todos os santos que o velho não batesse as botas. Não desejava continuar funhenhado pro resto da sua miserável vida. E não demorou pro coronel se recuperar e exigir satisfação.

Pela mãe de deus que não mentiria. Sim, fugira… Já estava a meio caminho da liberdade quando ouviu o relincho do cavalo e não deixou de sentir pena do sinhozinho, ao vê-lo ali, sem sentidos, quase afogado em sangue e lama, com a perna presa no estribo sob o peso do animal. Nem os bichos brutos da natureza gostam de ver sofrimento, disse em meio a duas lágrimas atrevidas. O velho sentiu uma brisa roçar-lhe os pelos e pela primeira vez na vida pensou sentir algum gosto por alguém que não fosse motivado por luxúria… Ordenou que fossem aplicadas apenas quarenta e nove das cinquenta chibatadas costumeiras. Conhecedor do gênero, atinou que encontrara um êmulo. E derramou, de leve, graças sobre a carapinha. Preciso era fazê-lo dever. Primeiro, chamou-o por nome, registrado em cartório o que melhor lhe assentou à índole. Depois, ao pedir um ou outro serviço, que reputava de confiança, fazia com que o zé, comesse bons bocados em suas mãos. Varejão se fazia de mouco. Nunca foi tão fácil colocar o dedo na ferida dos outros e disto tirar proveito. Pra quem nunca havia passado de borrão, chegar a traço é apoteose. Fazer-se usado, cevava o sonho de liberdade e quem sabe um torrão pra chamar de seu.

Não tardou outra urgência lhe cair no colo. Nas bandas do Rio Largo, outro zé endossou um documento de posse que, convenientemente declarado falso pelos bacharéis da situação, desencadeou uma onda revisionista de todos os títulos de propriedade locais. Foi um deus nos acuda. Centenas de desafetos e de indiferentes tiveram seus panos de bunda confiscados e arrolados na conta dos liberais. O coronel, na qualidade de cabeça da pátria, gritou a pleno pulmões chegada era a hora de botar nos eixos a nação. O outro zé alegou que no seu nem o divino metia a mão, que peitaria qualquer tribunal e o que é do homem o bicho não come, tamanha era sua convicção da legalidade do seu ato. Mas ora, se em rio que tem piranhas jacaré nada de costas, faltou combinar com os tártaros. Foram tantos os malfeitos que imputaram ao zé que até as paredes se indignaram. Virou peleja de cordel. É que em terra onde não existem argumentos mas sentenças de antemão, a justiça já vem prontinha e, como ninguém suporta enxaqueca, engole-se o caldo com os olhos, ouvidos e narizes tapados. Afinal, é mais um zé… É sempre um zé. Então, “vai lá, Varejão. Tu que um dia foi também zé. Tome um sobrenome e muita munição. Parta pros tabuleiros e coroe tua carreira. Aplique um corretivo exemplar, uma punição inédita, um castigo digno de figurar na lembrança. Seja minha mão direita, pesada tal e qual as de uma vintena de capitães-do-mato”.


Encarnado num abraão alucinado, num messias apoplético, Varejão moveu vales e montanhas, mudou rios de lugar, soterrou cidades, incendiou pastagens, tudo para encontrar seu homem, em casa, pejado de males. Pensou-se que ninguém em sã consciência seguiria com aquela antipatia. Decidido a não amolecer a mão, a não ceder um dedo sequer, botou sua roupa de domingo e partiu pro carnaval. Manietou o condenado e o arrastou pela praça principal, apesar das intercessões e dos pedidos de clemência. Investido de uma ira além homem, tal qual um tsunami, um apocalipse, um final dos tempos não escrito, impôs ao outro uma via dolorosa, semelhante àquela que várias vezes cumpriu, a caminho do pelourinho, um castigo tão fora de propósito que, quando chegou ao pé da casa grande, um comensal exclamou sua perplexidade: Benza deus, coronel: Esse Varejão é mau! O pau-de-dar-em-doido bateu dois dedos sujos na aba do chapéu, retesou a corda de embira e prosseguiu, finalmente conciliado com sua essência. Finalmente se livrara do seu zé. 

  

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