sábado, 6 de outubro de 2012

Não Tenho Cabeça


Rafal Olbinski, Recent Painting, 1994, Exhibition Poster


Devo contar uma história ou sugerir cenas?
Aguardaria que estivésseis interessados em jogos
Foster Wallace
Diário de Homem Vazio, Dublin, 1956


Ao amigo Saint-Clair Mello


Não tenho cabeça... “Como é mesmo o nome dela”? Não tenho cabeça pra mais nada. É um buraco só, cada dia mais fundo. Foi daí que decidi sentar-me aqui, donde posso observar todos que entram e saem desta birosca e talvez lembrar dalguma coisa afora estas grades numéricas, estes gráficos, estas estruturas, estas formas... Num minuto parecem me dizer tudo sobre o universo mas logo se transformam em bobagens, tolices saídas da cabeça de um biruta, sem qualquer valor prático.

Ela anda muito nervosa ultimamente. Andam todos muitos nervosos ultimamente. Andamos. Há uma urgência, um “para ontem” severamente suspenso no ar. Será alguma tempestade, um cataclismo, um estado de sitio, a última guerra mundial...? Nada de bom é entreouvido. Sim, há um nervosismo inexplicável, um efeito sem causa pairando... Como é possível, não haver razão para ela estar nervosa? Para nós estarmos nervosos. Nada, diz ela. Nada! Sempre lacônica, esta que estou a forçar minha cabeça a lembrar-lhe o nome. E nós, o que dizemos? Quando apenas ela fica nervosa, vá lá: é apenas ela a ficar nervosa com algo que nem ela nem ninguém consegue explicar o porquê. Mas quando todos à volta começam a ficar nervosos, é bom botar as barbas de molho porque algo de muito sério e/ou grave está para acontecer. E eu não quero ser pego de calças curtas. Um homem prevenido vale por dois, acabo de me lembrar. E é bom que eu lembre de coisas deste tipo, coisas que neste contexto não fazem o menor sentido. Embora saiba que a falta de sentido não irá resolver o problema dela, vocês sabem: esta coisa dos nervos.

Tenho perdido horas, dias a fio, a prescrutar o futuro e os destinos individuais, meu e dela, mas nada, nada mesmo se revela plausível. Para ser sincero, alcanço quando muito um amontoado de bolhas opacas e densas a bubiar bubiando dentro do meu cérebro. Chega a ser divertido, acaso fosse artista plástico e estivesse à cata de alguma ideia para uma instalação mas, qual! Não é por aí, estou à espera de algo mais prático. Aguardo algo mais útil, algo que possa explicar o nervosismo que têm atacado a todos ultimamente, principalmente a ela que já não consigo lembar mais o nome.

Ontem chamei-a de “ei, psiu”. Ela ficou puta. Disse que nunca lhe tive o menor respeito, que sempre fui insensível às suas emoções, desejos e vontades e que, quando nessas horas, passa a examinar o passado não vê virtude em nenhuma das minhas ações, só reprovação. E nisto se resume nossa relação. Um rosário réprobo. Ah sim, que está acorrentada a mim por estas coisas todas não resolvidas e pela pressão da sociedade que exige que ela seja o que sua natureza não aceita e que, enfim, não tem força ou coragem pra romper com este circulo porque cuidei de abaixar-lhe sempre a autoestima.

Do que diabos ela está falando? Ora, presumo que tenha feito o que era possível fazer. Nunca fui melhor nem pior do que sou hoje, pelo menos me sinto assim, acho que sempre fui quem sou. Que mais poderia ter feito, que mais posso fazer para que ela se sinta em casa, amparada, amada, benquista...? E mesmo não conseguindo lembrar-lhe o nome não quero de modo algum que ela ultrapasse o regime das palavras. É melhor assim, para nós dois. Não seria útil para ninguém se isto aqui terminasse em tragédia grega. Ou carioca, tanto faz. 

Surgiu-me agora: posso, a partir de hoje, começar a elogiar tudo que ela disser ou fizer. A mais completa fuleiragem dita ou feita por ela, em qualquer dia hora e local, posso lá estar a dizer que é a coisa mais maravilhosa do mundo. No fundo, penso que compreendo como ela se sente. Costumo envergonhar-me por e de muitas coisas. E nestas horas não me sinto nada confortável comigo mesmo, costumo dar um tapa na testa, na tentativa de me livrar dalguns pensamentos incômodos. Às vezes funciona, noutras preciso trazer a parede de encontro à testa.

Enfim, não tenho mais tempo para acostumar-me com outra pessoa – pressinto. Enquanto ela, terá que aceitar que não tenho mais cabeça pra nada e embora continue a jurar que farei tudo diferente (ela quer me fazer acreditar e chega às vezes a me convencer de que posso fazer diferente), quando as coisas começam a bubuiar dentro da minha cabeça sinto que perco um tempo danado a buscar entender o que realmente está a se passar com a gente e porque, de uns tempos pra cá, entre nós, tem aumentado o nível de nervosismo. Por outro lado, acho que esta história toda tem a ver, em parte, com o fato de que esqueci completamente o nome dela. Mas juro que vou me lembrar. Assim que encontrar a minha cabeça e o juízo dentro dela. 


2 comentários:

  1. Em primeiro lugar, obrigado por ter dedicado este belo texto a mim.
    Em segundo, saudar a volta, que demorou tanto, para que pudesse continuar desfrutando dos seus textos sempre interessantes e bem realizados.
    Salve, amigo!

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  2. Visita de sábado bem mais interessante com seu texto! Abraço do Pedra

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