sábado, 9 de junho de 2012

O Homem Honesto


Diogenes, Johann H.W. Tischbein, 1760


Temia os ladrões. Como uns e outros temem o pecado. E sabia que não seria com velas que os manteria afastados. Ladrões não temem rezas. Ladrões não temem praga. São a própria praga, pensava alto enquanto perturbava a paz com sua diatribe contra a inveja, essa miséria. “Se todos que me invejam trabalhassem, este seria o melhor país do mundo”. E tirava da manga a solução: criar uma milícia que defenestrasse todos os amigos do alheio (presentes, passados e futuros) e devolvesse ao homem honesto o controle da cidade, do país, da nação. “Que saudade da pracinha, do parque de diversão, das cadeiras na calçada, do footing das meninas, da fonte luminosa... ai, que saudade do tempo em que seja possível todas as inocências, mesmo ingênuas e pueris”!, costumava suspirar pelas quadras afora, o olhar fixo nas pedras do caminho como se não houvesse amanhã.

Homem honesto que era. Cuidava da família com o suor do rosto, sem deve nem haver nada a ninguém. O homem honesto é autossuficiente. Suas mãos, ferramentas; seus olhos, esquadro; seu tino, formão. Homem honesto é isto: um triângulo prestes a definir o círculo. Assim foi educado. Desde pequeno. A dar valor ao trabalho. E à ciência que faz do trabalho um valor. E justamente por isto não podia dar mole pra bandido: “Conversa! Ladrão é ladrão, não importa o que roubou, pra que roubou, por que roubou... tem que pagar com juros o que surrupiou. Movido pela inveja, maculou o valor do trabalho de todos os homens honestos.

Ele incluso. Honesto porém pensante. Sabia a diferença: respeito à lei. Mas não a lei qualquer. Àquela que permitisse sua consciência continuar repousando em travesseiros fofos. Isto é esperto. Que seria ele se desse bobeira pra político, nobre raça de sanguessugas? Não senhor. Honesto e esperto. Deste modo criou o pé-de-meia – belo, verdadeiro e bom futuro. Como? Dando seu dribles, engendrando fintas, porque a vida é que nem partida de futebol. Se se tomar cuidado com a linha do impedimento, no fim tudo é possível. Menos roubar. Que roubar é pecado, está na Bíblia. E como esta linha, na vida, anda meio difusa, é preciso que cada um cuide do seu quinhão antes que a barbárie de volta nos apanhe. A vigilância é o preço da liberdade sob pena da vacca vadit ad paludem, tem-se dito a boca larga sem qualquer cerimônia e nenhum constrangimento. Assim é.

Por isso decidiu que, mesmo sozinho, criaria uma milícia que ficasse de olho no patrimônio – seu patrimônio, é claro, não estava ali para entrar com a carne e outros com o espeto. E montou a fortaleza. Do bom e do melhor que o dinheiro pode comprar, daqui e dali. E enfiou-se dentro dela para de lá só sair muito bem escoltado.

Acontece que é da natureza humana, desejar o que vê pela frente, ainda mais se do objeto de desejo recomenda-se distância estando tão próximo. Uma hora vai que, olha para os dois lados e, vendo que ninguém vê, passa a mão, porque o que os olhos não veem o coração não sente. É preciso ser forte, ter altos desejos para não cair na tentação da maçã que envenenou a nossa curiosa, descuidada e tagarela Branca de Neve (ou seria Sara?).

Sem tanta digressão, veremos que ele podia ser honesto e esperto mas não conhecia nada de ser humano. Deixando à mostra apenas o estritamente necessário para manter o tratamento de doutor,  mais estacionamento privativo nos melhores shoppings da região, presumiu-se seguro. Aliás presumiu segura sua fortuna – toda ela empenhada em papeis, obras de arte, pedras e metais preciosos, bem guardados em cofres fortes, longe do alcance das mãos e olhos dos mexeriqueiros oficiais ou não, em tempos da alta rotatividade das finanças globais do tipo que não podem ficar um só dia sem cutucar a onça com vara curta só pelo gostinho de ver a cobra fumar, tal qual uma teenager fissurada em moda com duas ou três amigas cujos pais podem.

No posto de tenra isca e robusta a serpente, cevada em agrados desde quando necessitou adiantar-se aos reveses da fortuna patrocinado por potentes inimigos juramentados em cartórios de serventias, não viu saída senão trancar-se no quarto do pânico, construído para resistir a um cataclismo. Que teria preferido a. A década que passou aprisionado naquelas quatro paredes (metro e meio de titânio reforçado) foi mais que suficiente para que a milicia (tão laboriosamente imitada como sói acontecer com mercadoria altamente rentável), agora conseguido o beneplácito da mídia sequiosa de pregações monopolistas, com base em documentos caprichosa e milimetricamente forjados (além de vários pescoções, de acordo com certa ótica bem aplicados, em alguns porta-vozes da impessoalidade nos negócios e sustentabilidade das ações), tomasse conta do império e instituísse a lei de talião como o suprassumo do novo ordenamento jurídico que, ultrapassado o limite do privado apossou-se do público ávido por desforras e algumas casquinhas. Não durou meia hora. Milícia rival agigantou-se e, em nome da moral e dos bons costumes, desbancou aquela esbórnia até o próximo pregão da Bolsa dos Nove Foras. Voltou-se para os ladrões de galinha, para os pés de chinelo, mas aí já era tarde demais. Ladrão de galinha não havia. Apenas altas celebridades.  


Um comentário:

  1. Acho que estou conhecendo a geografia onde esta parábola se localiza. Ou estarei errado?

    ResponderExcluir