sábado, 2 de junho de 2012

Como a Noite Apareceu



Cobra Grande, Ilustração de Laerte Silvino, 2009


No principio, a noite existia mas ninguém conhecia. Era sempre dia e ninguém dormia. Mareneíma, da tribo Tapuia, caiu na besteira de se apaixonar por um caraíba. Seu pai não gostou nadinha daquele ramerrame. Usou seus poderes mágicos. Transformou a filha numa imensa sucuri. Maraneína, muito triste com aquela separação, num ato de vingança, carregou a noite pro fundo do rio Amazonas.

É por isto que o povo da floresta morre de medo de sucuri. Quando vem à tona, não poupa vivente, derruba barrancos, encalha navios. Não existe canoa forte que resista aos seus ataques. Diante da Cobra Grande, todo valente agoniza de fraqueza.

A linda e meiga Cunhapora crescera sob os cuidados do avô, longe da mãe. Quando chegou a idade de casar, recebeu dele a benção. Aimberê, foi escolhido. Moço forte e bonito, irmão de Cauré. E foram viver na maloca da família de Aimberê.

Cauré e Aimberê não eram gêmeos mas o que um sentia o outro sentia também. O que um queria o outro dizia amém. Para onde Aimberê se movia, lá estava Cauré. Se Aimberê ia caçar, Cauré ia junto. Se Aimberê ia tomar banho, Cauré ia também. Se Aimberê ia pro matinho, Cauré dizia: me espera!

Aquilo passava por fraternidade. Mas com o tempo, o grude virou problema. “Vai ver se estou na esquina, Cauré”, pedia Aimberê. “Mas na floresta não tem esquina, Berê”, sorria o irmão. “Então vá passear na praia que quero muito dormir”, respondia Aimberê. “Mas a noite não existe”, retrucava Cauré. E Aimberê se punha a matutar num jeito de ficar sozinho com Cunhapora. A vontade de dormir bagunçava seus pensamentos. “Dormir pra que?” Cauré resmungava. “Quando a gente dorme a alma da gente vai embora. Eu não, não quero saber dessa besteira de dormir. Quando a gente morre, dorme pra sempre”.

Antes de partir para o fundo do rio, M'boia Açu prometera à filha um lindo presente. E até aquela data, necas de pitibiribas. Aimberê puxou Cunhapora pro lado e lembrou-lhe da promessa feita pela sogra. Cauré buscaria a encomenda e assim ficariam sozinhos para brincar.

Cauré aceitou a tarefa contente da vida. Afinal, faria qualquer coisa por aquele irmão. Gostava dele e fazia de um tudo para não vê-lo aporrinhado. O irmão era o irmão, o que não pedia chorando que não fizesse sorrindo? Pegou a canoa, jogou dentro um porção de frutas e, seguiu ao encontro da temida Cobra Grande.

Quando estava muitas léguas rio acima, na beirada do poente, M'boia Açu aflorou. Com sua imensa cauda, deu três lapadas na superfície da água. Cauré quis gritar mas resistiu. E engrolando as palavras disse: “Vim a mando de Cunhapora”. Ao ouvir o nome da filha, Cobra Grande sossegou. “Vim buscar o presente de casamento que você prometeu. O marido dela quer muito dormir. Não sei pra que, mas parece que a sua filha também quer”. O rasgo que servia de boca à serpente de repente escancarou. Cauré pensou: vai me devorar. Mas o que ouviu foi uma risada gostosa de quem aparenta satisfação. M'boia Açu disse: “Espera aí que vou ali e volto já”.

E não demorou segundos, estava de volta à tona com um coco. “Está aqui o que minha filha precisa. Mas olhe, tenha cuidado, não abra. O buraquinho foi muito bem tapado com cera de uruçu. Se for aberto, todas as coisas se perderão. E você vai junto, zoiudo”. Com ânimo reforçado, Cauré atalhou: “Não precisa se preocupar, M'boia Açu. Sou sujeito reservado”. E a Cobra Grande olhou bem no fundo dos seus olhos: “É bom que seja assim, senão... Agora vá, diga à minha filha que meu coração já está mais aliviado. O fato de você vir aqui é a prova de que, pelo menos ela, ainda gosta de mim”. E mergulhou num rompante que levantou uma onda do tamanho de uma casa. Cauré segurou-se nas bordas da canoa que deslizou ligeira na direção do nascente.

Faltando metade do caminho para chegar à aldeia, Cauré reparou num bocado de ruídos estranhos. Assuntou donde vinham mas não viu nada que se assemelhasse. Os ruídos continuaram. Assuntou de novo e notou que vinham de dentro do coco. Aquilo só podia ser presepada de M'boia Açu. Pegou o coco e encostou o ouvido. Sim senhor, vinha de dentro do coco aquele monte de ruídos. O que será?, o que será?... Pensou que se fizesse um furinho podia saber do que se tratava. Olhou pra frente, pra trás, para os dois lados do rio e, com a ponta da unha, retirou um tantinho da cera. Foi o bastante. A noite saiu em revoada e cobriu toda a terra. Cauré acudiu pedir socorro mas, da sua garganta, em vez de voz o que saiu foi grunhido. Cauré não era mais Cauré. Cauré agora era macaco.

Na aldeia todos foram pegos de surpresa. Não sabiam que a noite era daquele jeito: ruidosa, cheia de barulhos estranhos e assustadores. Receosos, cada um cuidou de procurar um buraco onde se enfiaram até que aquelas visagens desaparecessem. Cunhapora falou: “Cauré fez bobagem. Não era pra noite vir assim”. Aimberê, satisfeito, não queria saber de mais nada, queria o que sempre quis desde que conheceu sua amada. “Vem, Cunhapora, vem, vamos dormir”. E não notou que o cesto onde guardavam mandioca havia se transformado em onça; os gravetos que iam começar o fogo, agora eram lagartixas; a tigela onde preparavam o cauim, se mexia que nem tatu; os galhos das árvores viraram corujas; e as pedras na beira do rio metamorfosearam-se em sapos e rãs.

Não posso. Preciso dar nome as coisas. Senão tudo vai ficar perdido e a gente nunca vai conseguir encontrar coisa alguma”, disse Cunhapora. E no assento da palavra, com aquela escuridão tomando conta de tudo, foi chamando cada coisa pelo nome que lhe vinha à cabeça e, a medida que atendiam, soprava-lhes na boca a voz de cada um. Assim fez até que a noite sossegou e, finalmente, todos puderam dormir. Nove meses depois, Aimberê e Cunhapora ganharam de presente um belo kuru'mi que ri muito cada vez que a mãe lhe conta esta história.

E quanto a Cauré? Bem, passado um tempo, cansado de viver de galho em galho, voltou para a aldeia e foi destranformado. Mas sabe-se lá porque, daquele dia em diante, só consegue dormir com um olho aberto e outro fechado.


3 comentários:

  1. Obrigada por ter me dado força meu amigo; foi muito bom tudo que disse, Deus o abençoe sempre!
    Logo voltarei a compor, graças a vcs todos que lá estiveram; é mt saber que temos amigos sinceros, faz mt bem a alma!
    Um grande bjo no core!!!
    Gena

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  2. Poxa sinto saudades de quando montei essa lenda com teatro de bonecos, adaptação do mestre Paulo Deo! Vamos que vamos, viva as lendas, viva o Teatro, viva o mestre!

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