sábado, 26 de maio de 2012

Uma História é uma História.


Vertigem, Inam Maleki, 1998


Ouvi de Rigot. Disse-me num fim de tarde plácida com promessa de noite fria, enquanto saboreávamos um cafezinho fumegante num sujinho em pleno Largo do Paisandú nem aí para a hora, preocupados estávamos em esticar ao máximo nossa conversa até que aquela maioria afobada tivesse se enfurnado sabe-se lá adonde que merecesse tamanha pressa e nos permitisse um lugarzinho pra sentar a caminho de casa no coletivo.

E disse mais. Que foi Chexa - alagoano falador, pleno de mumunhas e mungangas, lá pros idos dos 80, num boteco à beira da Lagoa Mandaú - quem contou, sem fazer questão nenhuma de alardear autoria. Pelo contrário, deixou claro que ouvira tal fantasia diretamente da boca do muito admirado (inclusive seu) doutor Diógenes e que, no seu modo troncho de bendizer as coisas, bem podia ter sido provocada pelo consumo de alguma droga com alto poder de sedução.

Vício que todos nós temos, acrescentei quase queimando a língua. Assoprei: sempre colocamos aquele tempero, uma pitadinha de não sei quê, um colorido local, uma voz próxima, àquilo que, a troco de passar o tempo, acaba por chamar atenção por conta desta necessidade que temos de tornar uma boa história parte da nossa vida. Uma história bem contada nem precisa ser novata, basta que quem a conte consiga nos convencer de uma nesga de verdade. A loucura mais improvável deve ter motivos e consequências o mais familiar possível. Senão como tirar proveito? No mais das vezes, a história pouco importa. Importa mesmo como é contada.

Minha observação não afetou em nada meu velho amigo Rigot, preocupado estava em afastar algumas moscas que festejavam migalhas no canto da sua boca, o que enlouqueceu-me ainda mais. Não com as muscas mas com aquele negócio de fogo fátuo, lágrimas de fogo caindo do céu suave e lentamente numa noite tormentosa e memorável. Ele tinha o poder de deixar-me embatucado. Não costumava seguir uma lógica linear, de causa pra consequência mas, ia aos pulos, de trás pra diante e quase sempre botando tudo de ponta cabeça. Eu tentava acompanhar mas, devido minhas limitações costumeiras, agravadas por esta minha atávica tendência ao conformismo, quase sempre eu perdia boa parte dos seus relatos. E como tinha me proposto a colocar no papel o que pudesse alcançar das suas digressões, andar com ele e tentar acompanhar suas aventuras era quase como mergulhar no mais profundo dos abismos, sem nenhuma garantia de retorno. Mas lá ia-me a criar-me embaraços. De onde tinha surgido metáforas tão plausíveis? Quem era esse tal de doutor Diógenes? Rigot disse sossega, vamos andando que até o meio da Consolação você vai compreender aonde quero chegar. Tinha investigado. E então? Continuou meio enviesado pelas razões anteriormente expostas mas com visível esforço para tranquilizar-me: doutor Diógenes foi-me apresentado três dias depois daquela noite, na praça do Mercado. Seu consultório particular. Toda segunda, quarta e sexta, distribuía entre os mercadantes e quem mais o procurasse, auscultações e receitórios a troco de bacia de verduras, talhada de melancia, meia dúzia de ovos, mei litro de feijão... Não que precisasse, precisava não! Aceitava. Sabia que ninguém gosta de dever favor a ninguém e que a melhor recompensa é ver que os outros apreciam aquilo que temos para dar, de coração. Era assim, aquele catedrático ancião: não dispensava a passada na feira para falar com seus amigos e fazer novos. E como duma boa conversa ninguém escapa de abrir o peito, o doutor acabava cuidando também de almas, para desgosto da sua digníssima esposa, senhora de bons princípios mas ciosa de que nem tudo são flores neste vale de lágrimas e maledicências.

Tá. Legal. Um altruísta que sabia contar histórias! É só? O que quero saber é porque ele contava sempre o mesmo causo, disse-lhe tomado pela impaciência por não entender o fato de termos desistido de pegar o ônibus e haja visto minhas panturrilhas encontrarem-se em petição de miséria ali por volta da Praça Roosevelt. Dava o que todos queriam, rangeu Rigot. E gostavam, oras. Tanto que repetiam ipsis litteris. E ai daquele que tentasse mudar uma vírgula - caiam de pau no contador pelo atrevimento ou negligência: não foi daquele jeito que o doutor Diógenes contou, justiçavam.  Tentei adiantar-me mas fui contido pela sentença: Desista de impedir-me à conclusão, agora que estamos perto do extinto Belas Artes e cada um pode seguir pro seu lado. Paramos e ele aproveitou: já no fim da vida, preocupado 1) com aquela unânime celebridade em torno de si e da sua única história contada e recontada em quantas idas à feira se fizesse por dever de oficio ou pura e simples alegria e, 2) com a multiplicidade de línguas contadoras nascidas como que por geração espontânea, sempre a divulgarem as mesmas frases, tornadas agora lugares comuns, clichês e cânones lítero-conversatórios, doutor Diógenes decidiu mudar aquele estado de coisas. Dedicou seus últimos dias a contar individualmente a mesmíssima história só que para um modificada em uma frase, pra outro  uma variação da paisagem, praqueloutro uma entonação... e assim, aos poucos, sua história, aquela história tornou-se vária, a fazer com que cada ouvinte tomasse posse de algo novo e original.


Um comentário:

  1. E vão-se as histórias sendo contadas, recontadas, com seus pontos a mais. É um dos prazeres que se tem: contar histórias.

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