sábado, 28 de abril de 2012

A Carta



Pintura em Vaso, Grécia, 500 a.C

Após vasto tempo, não sei quanto mas não uma eternidade, encontro Rigot. Carlos Rigot. Pensei tê-lo esquecido. Não sabia o que dizer. Fiquei encabulado. Que puxasse assunto, fingiria ocupação. Mexi daqui, dali... Rigot espera. Aguarda até que eu pare. Então começa.

A missão era simples. Vasculhar cada canto à procura do ou de dinheiro. Dinheiro, sim senhor. Impossível não haver dinheiro. E se havia dinheiro, era para ser encontrado. A ordem era não deixar pedra sobre pedra, que passasse pente fino, que filtrasse cada milimetro e, prestasse atenção: imperativo encontrar dinheiro.

Fui rápido. Solução também simples. Inundei o lugar. Fiz com que tudo passasse por um duto. Do tamanho do meu campo visual, a saída. Observei cada insignificância que desfilou através do filtro. Longa vigília. Horas e horas, diligente, vigilante. Tudo escoou, escorreu e nada, nada do ou de dinheiro.

Que mereça nota? Nada, já disse. Embora uma velha gaveta, desavisada, tenha revelado um primitivo mecanismo, um modesto aparelho, mas nada relevante, diria pueril por não possuir qualquer engenho ou arte. Ah, sim, jornais, velhos, muitos, empilhados mas não mereciam o cuidado de lê-los. Pura tinta, tóxica. Além disso, nada. A não ser... espere, recordo... a não ser aquele velho revolver, Colt 45 prateado. Madrepérola, o cabo. Uau! Reluzia assim como algo que... Trazia-me à lembrança qualquer coisa sobre. Pertencera aquela arma a uma grande artista norte americana – cantora, mais precisamente - que ninguém mais lembrava o nome? Como esquecemos rápido as coisas, pensei e isto causou-me certo desalento mas logo me vi obrigado a retornar, pois era como houvesse encontrado ouro ou experimentado uma epifania.

Não é que o objeto levou-me retroceder até aquela luzinha que havia sido acesa lá no fundo, lá longe, lá dentro? Manipulei a arma com desenvoltura, com gosto, com genuíno prazer, como um cowboy, um autêntico cowboy hollywoodiano, autêntico porque único com estatuto de verdade, lembrei-me repleto de auto confiança.

Um bom par de horas passou-se. Só então o brinquedo desistiu de animar-me. Inútil, desprezei-o não sem antes viver uma certa relutância: ocorreu-me lembrar de alguns desafetos. Mas passou. De volta, confortei-me com a possibilidade de que talvez algum museu pudesse interessar-se pela peça. Valeria quantos trocados? Trocados era tudo que eu precisava para resolver duas ou três pendências que ainda me mantinham preso àquele emprego e àquela cidade.

O revolver. Não o guardei para mim, não o escondi no bolso, não havia como. Daí desejar pensar melhor. Com mais propriedade, cabeça fresca. Queria relacionar alguns fatos e, sobretudo, algumas versões que circulavam com bastante insistência com ares insuspeitos de propriedade. Ansiava verificar a possibilidade de nunca possuí-lo. É que talvez nunca devesse tê-lo olhado. Talvez nunca devesse sequer tê-lo descoberto, sabido seu propósito, sabido usá-lo. Se usei? Não, não usei. Alguém falou que usei? Absurdo. E digo: intrigas. Tranquilo, aguardo.

Se estou a colocar-me memórias, memórias que nunca tive, apenas para jactar-me, como fazem os cowboys? Como assim? Você diz, invasores de corpos, é isto? Deus, sempre os gringos e seus filmes. Os cowboys de mentira que viraram de verdade. A prova viva de que o mito precede, procede e propaga. Lembra da ilha, do eldorado, hybrasil, avalon, sei lá que outros tantos nomes, todos frutos da indigência, da recusa ancestral, do desgosto com esta terra sem encanto? Deve existir outra que não esta terra de dores, eu penso, só não sei onde. Deve ser lá. Lá é muito melhor. Lá é sempre melhor que aqui. Preciso de asas, sacou? O chão não é e nunca foi o meu lugar. Aqui não é o meu lugar. Não quero estar aqui, nunca. Por isto choro, peço e berro. O resto são lembranças, algumas sim outras não. Todas cruéis. Mas não quero pensar nisto agora. Devo continuar adiante, continuar minha busca. Certeza? Só quando alcançar a prova. Onde eu estava?

Olhe, sim, pois não é que surgiu? Eis que surgiu, no meio de panos envilecidos, a prova. Vi o que alguns diriam dúvida. Mas, para mim, sim senhor, prova. A única prova. Cabível. Irrefutável. Que? Um maço de cartas. Velhas. Amassadas e dobradas como se dobra dinheiro. Embrulhadas em papel jornal. Fita vermelha? Não, não havia. Não tem nada de romântico nesta história. Era um pacote. Que pensei a princípio tratar-se do dinheiro, daquele dinheiro que me foi dito estar escondido, que bastava olhar com olhar aguçado acabaria por encontrá-lo. Por isso meu coração pulsou, por isso ri, novamente, mais alegre, esperança recompensada, sabe como é? Mas era tudo letra. Dele, dela, sei lá. De dois. Dos dois, a conversa. Abri. Antiga. Passada a limpo. Uma em especial. Li rápido. Exasperava-me a necessidade de continuar a busca, de ter que partir. Comprovei que senti tantas, as águas passadas. Que eram iguais. Que não havia alcançado o fim, que tinha ainda de partir. Que era tempo. Que longas horas pesadas ali. E enquanto lia a letra miúda, quase desenho, desenho ágil, nenhum rabisco, perguntei se algum toque de perfume havia. Não pude lembrar, não quis lembrar, também não quero lembrar agora. Apenas segui a linha que parecia saber o que eu sequer imaginaria. E a letra era como se fosse minha. A letra miudinha. Nadinha.

Diga se não era para rir? De tão sério, tão fútil era. Ouça, era assim: “João amava Tereza que amava Raimundo que amava Maria que amava Joaquim que amava Lili que não amava ninguém”. A letra... Era assim que a letra dizia. Como se falasse. A dizer, como se falar fosse próprio. Dele ou dela. Diga-me: havia como não tomá-la também para mim? Pois é, aquilo que nunca me pertenceu ou jamais pertenceria era o que eu queria. Então a linha terminava assim: “João foi pra os Estados Unidos, Tereza para o convento, Raimundo morreu de desastre, Maria ficou para tia, Joaquim suicidou-se e Lili casou com J. Pinto Fernandes que não tinha entrado na história”. Bastou-me. Fui desfrutar dos louros. Fazemos ou não fazemos parte desta Quadrilha, como primeiro nos disse Drummond?"

Saiu sem despedir-se. Não deu-me escolha. Esquecê-lo, como? Meu amigo tem algo de inapropriado.



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