sábado, 18 de fevereiro de 2012

Preâmbulo


Morning Sun, Edward Hopper, 1952


Não faço ideia de como vim parar aqui. Acordei e estava aqui, deitado sobre palhas de coqueiro, vestido apenas do que deve ter sido uma calça. Digo coqueiro e calça assim assim, sem qualquer convicção, não sei exatamente o que estas palavras significam. Mas, por uma espécie de memória que presumo tenha sido um passado (e que ocorre-me em lampejos), parece que sei algo de coisas que nem imagino. Talvez tenha vivido outra vida. Uma vida diferente desta que penso agora. Bruuuu! Assusta-me mergulhar nesta região de vazios e labirintos intermináveis: o lugar das coisas que não sei. Desejo apenas alguma familiaridade. Incomoda-me ser estranho.

Olho-me. Cabelo: emaranhado de fios adornados com gravetos e restos de folhas; pele: ressecada, complexo de manchas pálidas; unhas: compridas – devo roê-las para que não me firam; pés: gretados, espalmam-se chapados e desengonçados sobre a areia, restos de vegetação e pedregulhos... Difícil acostumar. Tantas causas e efeitos, pensamentos em redemunho, embaraços desagradáveis. Se ao menos conseguisse relacioná-los. O grande problema é que ainda não consegui resposta satisfatória que explique, de modo claro e definitivo, dois fatos: primeiro, por que estou aqui e não em outro lugar qualquer e, segundo, sou o que penso que sou ou outro que desconheço?

De modo claro e definitivo”! Deixo-me seduzir. Para prosseguir nessa jornada, incessante ir e vir sempre aqui, mesmo lugar. As ondas do mar me refletem? Caminhar em círculos, não quero. Já experimentei e fiquei tonto. Em linha reta, algumas impossibilidades. Talvez melhor seja andar em ziguezague, vez por outra descrevendo uma curva. Parece-me mais elegante. Que coisa, não? Sozinho, ignorante de mim e do mundo, preocupo-me com elegância. Tudo isto é esquisito. Só não sei dizer como.

Ainda não me atrevi conhecer este lugar. Nem imagino qual deva ser minha reação se houver outros neste espaço. Não desejo conhecê-los. Temo conhecê-los. Talvez possuam uma cultura desenvolvida, talvez sejam sofisticados demais e acabem por rejeitar-me; talvez sejam bárbaros com rituais medonhos, que me façam passar por constrangimentos violentos ou acabem por devorar-me nalgum festim diabólico; ou talvez sejam absolutamente indiferentes a tudo e todos e aí não valerá o esforço de aproximação. O fato é que não tenho vontade de sair desta nesga de praia. Estou bem aqui. Temo perder-me, isto é, perder-me mais ainda. Sei lá, perder-me irremediavelmente. Perder esta única companhia que sou para mim mesmo. O que não é grande coisa. Divergimos o tempo todo. Eu e eu, comigo mesmo, qual velhos conhecidos. Estranhos conhecidos.

Caminhar por aí... Sobrevivo com pouco: raízes, insetos e alguns peixes e moluscos que consigo apanhar na maré baixa. Divirto-me lambendo das folhas o orvalho acumulado durante a madrugada. Na maré alta, engancho-me nos galhos médios dalguma árvore e passo o tempo rindo e praguejando com as formigas. Esta ausência é um desgosto. Devo comunicar-me, com o exterior. Existe algo além deste mar? Desconforta-me a ideia de ser este o único lugar do mundo. Se todo o mundo resumir-se nesta que penso ser uma ilha, estou mesmo ferrado. Para sempre, com este eu tirânico.

Dói-me pensar que este oceano não tem fim. Conforta-me imaginar que exista além. Outros além. Diferentes. Passo o tempo, configurando-os. Ocupo-me. Deste infinito tormento. Todas as alternativas. Possíveis e impossíveis. Povoar o vazio. Sufoca-me passar as horas a olhar o nada, trocando meia dúzias de palavras comigo mesmo. Tenho que colocar-me em marcha, diminuir esta distância. Talvez descubra coisas que me façam aceitar o fato de que este é, sempre foi e será, o meu lugar, o único lugar onde alguém como eu possa existir. E nada de tudo ou nada, um pouco de cada vez. O quebra cabeça continua na parede, acho que perdi uma das suas mil peças. Está por aí, em algum lugar. Vou fazer de conta que esqueci.

 

3 comentários:

  1. Bom dia!
    Adorei conhecer seu blog. E te confesso que me emocionei ar ler este texto.
    Grande abraço
    se cuida

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  2. Belo texto! O homem e a ilha que ele pensa ser, contra todo um oceano aí fora.

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  3. Ótimo texto, nem precisaria dizer, mas como sou eu essa menina que não quer perder uma oportunidade.
    No meu oceano será que perdi você? Não mais nos comunicamos...Saudades do amigo, sempre
    Iris

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