sábado, 25 de fevereiro de 2012

O Espelho das Torres


La Reproduction Interdite, René Magrite, 1937


Conta-se que veio de longe. Descrevem-no com o dobro da altura de um homem, largura de 2,6515 côvados. Sua confecção foi motivo de controvérsia no recente Congresso da Antiga e Última Guilda dos Fabricantes de Espelhos (evento clandestino, diga-se de passagem, sabido que esta associação encontra-se banida desde que Luiz XIV ordenou o mega suborno dos mais altos mestres desta arte, focado que estava na construção do famoso Salão dos Reflexos, no Palácio de Versalhes onde, em qualquer jantar intimo, podia facilmente sentir-se na multidão de si mesmo). Repercutindo não se sabe quais interesses, vazou deste encontro documento assinado por um tal J.S. Scruder. Neste texto rebuscado e cheio de rasuras, o auto proclamado Mestre Vidreiro, 3º Grau das Especificações Escocesas, apresenta provas, ditas irrefutáveis, de que não foram os fenícios os primeiros a desenvolverem a técnica de polir o bronze mas data da pré história o conhecimento das propriedades físicas e místicas de tais artefatos. No penúltimo paragrafo, sob manchas de muco, afirma ter registrado em cartório um calhamaço de 1235 páginas, onde demonstra por A mais B que o controvertido Espelho das Torres foi obra de Hednus Threestar, laborioso mestre das lendárias Terras Íngremes, no ano XII do Vetusto Calendário Pagão, sob os auspícios de Zulkilfe Al'Fark, o Conversador, que ouviu das estrelas, numa noite enluarada, o modo de conceber e registrar a realidade primeira e última de todas as coisas.

Sabemos que é uma peça grande, composta de duas partes. Uma exterior e outra interior unidas por cavilhas no topo e na base, permitindo volta em 360 graus no eixo transversal. Tanto a moldura externa quanto a interna são de madeira (provavelmente cedro) revestida de marfim e recoberta com substância dourada ribombante que, segundo os técnicos, ainda confusos quanto à sua composição, é responsável pela permanência do material tanto tempo ao longo do tempo. A moldura exterior encontra-se apoiada sobre maciços pés, assemelhados a patorra de felinos. A interna ergue-se qual silhueta feminina a flutuar no espaço proposto e permitido por sua irmã maior, a qual ostenta no topo uma pseudo arquitrave onde repousa uma águia de asas abertas sobre uma lombada de ramos de ciprestes a terminarem nas laterais enroscados em duas torres cujos cumes apontam como setas para o infinito. Os especialistas divergem com relação a estes motivos. Uns acreditam no caráter funesto e maldito das imagens e, sob fórmulas secretas cuidam de esconjurá-las; outros, creem tratar-se de um portal de acesso à transcendência, qualificando-o como um buraco de minhoca de popular acesso; e há outros que preferem a hipótese delas denotarem o caráter transitório da existência, sob o argumento de que seu design obedeceu aos ditames do mercado estético da época e como a moda muda torna-se impossível determinar, com precisão, o mistério que tais imagens aludem, visto que em sendo mistério, mistério deve ficar, senão não haveria mistério.

Vários autores se referiram a este portentoso artefato. A literatura é vasta quanto aos seus possuidores e vítimas. Sim, vítimas. Sua folha pregressa lista inumeráveis infortúnios aos seus possuidores. O fato é que muita gente pereceu diante deste devorador de almas e mesmo assim continua a corrida por sua posse. Hoje, a preços inconcebíveis, numa tentativa de evitar que a nova classe “c” se aposse desta preciosa e perigosa joia do engenho humano. Curadores de todo o mundo, contudo, selaram um pacto de silêncio. Nenhum catálogo sério menciona o dito espelho. Sabe-se, no entanto, que ele continua por aí, fazendo das suas, nalguma galeria excêntrica e perversa. Porém, dada certas propriedades misteriosas, impiedosamente assassinas, o Espelho das Torres tem sobrevivido a cataclismos por mais de 2500 anos. Scruder, o último a analisar-lhe a causa de tão longeva duração, proclamou que tal monstruosidade deveria ser despachada para o espaço na direção de Alfa Centauro, como forma de evitar a próxima invasão da Terra, programada por conhecidos alienígenas de irascível intolerância, se concretize.

Com razoável distância, permito-me humildemente (e à boca pequena) colaborar com uma nota. Mesmo por que o melhor que tenho a fazer é continuar de onde pararam meus antecessores, na esperança de que contribuo com o futuro no qual, graças a evolução natural do escuro para o claro, todas as coisas escondidas virão à luz nos permitindo conhecer o aleph que despache todas as superstições e crendices que assolam nosso bem estar para o seu devido lugar de descanso, ou seja, os livros infantis.

Permito-me aludir ao que me foi passado por Nicodemos de Afiz, o Diminuto - jesuíta, expatriado para o Brasil, durante a ditadura Médici. Este elétrico presbítero havia sido acusado pelo alto clero vaticânico de menoscabar a consubstancialidade da Santíssima Trindade, ao proclamar sua inviabilidade técnica e psicológica. Preceituava ele a tripartição nas figuras distintas do Pai, Mãe e Filho, mais facilmente assimilável pelas massas. Como se sabe, não se mexe à toa com vespeiro, principalmente quando tal insídia é dogma tão sofridamente concebido em concílios e conclaves. Numa noite, enquanto bebericávamos num sujinho da Consolação, contou ele que, um conhecido seu (omitiu o nome, temia que seus (do conhecido) familiares, ainda vivos, pudessem ser alvos de persecutórias investigações), ordenado padre em 1938, houvera sido autor, dentre outros, de um opúsculo de 25 páginas, intitulado o Sêmen da Esperança. Apesar de inumeráveis confissões, exorcismos e penitências tornou público seu ataque ao sagrado direito da igreja de usar imagens faustosas na descrição do paraíso, prorrompendo: “Vós não quereis que os pobres tenham acesso ao céu?”. O castigo imposto pela congregação (contou-me Nicodemos – olhos esbugalhados, filetes de suor percorrendo-lhe a calva, falanges nervosas entrelaçando nós de dedos gastos em códigos escritos e estritos) foi expô-lo nu diante de réplica autenticada de fatídico espelho, cujo original encontrava-se em lugar incerto e duvidoso, inacessível aos paladinos da fé, mas de sabida serventia aos propósitos motivo vocacionais. O que ele viu – indescritível – foi a imagem do... Nada. Podia sentir seu corpo mas não se via refletido no espelho. Como seria aquilo possível? Gritou e ouviu o eco tonitruante da sua voz reverberar na cúpula da nave santa. Quis apossar-se da primeira estaca mas, estacas não havia. Quis alcançar a pia batismal mas, água benta infelizmente estava em falta. Por fim, impelido por seus confrades que conjuravam poderes milenares, poderes capazes de deter tamanha aberração da natureza humana, agarrou-se à cruz. De olhos vendados, pode perceber que o vestiam. Não lutou contra, não tinha forças, deixou-se paramentar até a última estola. Quando a venda finalmente foi retirada, o que viu assemelhava-se aquilo que, em suas mais estranhas visões, parecia reservado apenas às mais altas eminências: a contemplação da glória. Se viu sua verdadeira face, não sei, Nicodemos não disse mas, pelo que pude intuir tratou-se de uma visão assombrosa, aterradora, abismal. Poe, com sua maestria, a teria descrito como o grasnar de um corvo em noite tempestuosa, noite e ruído que se repetem, em progressão algébrica, monocordicamente. Ao espelho jamais engana nossa verdadeira identidade, teria finalizado. Quanto ao jovem sacerdote, acostumou-se, deu-se por satisfeito, abraçou a fé que antes insistia em lhe fugir. O problema é que, daí a alguns dias, passou a ser visto frequentemente à noite, em lugares ermos, despido do hábito, alardeando conhecer o segredo da invisibilidade. Preso várias vezes por atentado ao pudor, a cúpula da igreja não teve outra alternativa senão trancafiá-lo para todo o sempre nos porões da Sistina. De lá, frisou meu interlocutor, é possível, em noites de frio extremo, ouvir o balbucio de frases desconexas no meio das quais, ao ouvido atento, é possível distinguir algo como “a última porta será aberta pelo último cordeiro”. Chi lo sa! Labirintos, diria Borges.

- Pobre criatura! Nunca conseguiram remover tal leseira de seus neurônios, pontificou Nicodemos, mal sabendo que muitos anos antes um frágil alferes da guarda nacional tivera sua pueril idade destroçada, ao expor, de modo também compulsório, sua ingênua alma à face de outro espelho, tal qual o da sua narrativa. Só que este nos chegou através de fidalga fuga das hordas napoleônicas. Não poderia ser o mesmo. - Preste atenção: existem cópias, várias, bradou agitado. Após o último gole de conhaque, e já pronto a entregar-me às delícias do sono, este amigo do sonho, ponderei que se o falso podia produzir aquele efeito, imaginasse o verdadeiro. - Ou talvez o tal espelho possua o dom da ubiquidade, confidenciou Nicodemos, numa imitação vicentpraiciana de arrepiar os cabelos. Fiquei sem palavras.


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