sábado, 11 de fevereiro de 2012

Medo do Escuro


Noah Scalin, Human Skull Puzzle


Já tentei de tudo, doutor. Frequentei até terreiro e nada. Perdi a coragem. Perdi vírgula, como posso ter perdido algo que nunca tive? Pois é, nasci assim, totalmente covarde. Numa família de machos. Estranho, não? Olha só: meu pai pegava touro pelos chifres; meus tios matavam a cobra e mostravam o pau; e, enquanto minha mãe e minhas irmãs faziam das tripas coração, meus irmãos vangloriavam-se de darem um boi para não entrarem numa briga e uma boiada para permanecerem nela. Como posso ter seguido carreira diversa, doutor?

Minha pergunta é: como se ganha coragem? Que ingredientes poderia misturar para obter uma, digamos, porção de coragem? Um amigo meu disse que comprou coragem numa loja de antiquidades, por um precinho bem camarada. Deve ter funcionado, o encontrei outro dia defendendo a ordem em praça pública. Ordem de quem, perguntei. E ele, com os olhos baços, disse que não precisava saber, que ordem era ordem, não importava de onde viesse, que o dever de todos era obedecer e aí daqueles que ousassem desafiá-la. Manda quem pode, obedece quem tem juízo, saiu resmungando, como que repetindo um mantra. Porçãozinha poderosa, esta!

Será que cumprir ordens é ser corajoso, doutor? Vivo cumprindo ordens e não sinto que esta atitude acrescente uma gota de coragem ao meu currículum. Aliás, isto nada tem a ver com coragem, tem a ver com necessidade. Se não cumprir ordens, não terei o que colocar à mesa, o que vestir, onde morar. Se bem que estas necessidades não sejam satisfeitas a contento, como eu gostaria que fossem mas, dá pro gasto: não passo fome, tenho três ou quatro camisetas e um par de tênis que comprei a prestação. Contrato foi feito pra se cumprir, até segunda ordem, certo?

Outro dia li que ter coragem é uma habilidade. Habilidade de confrontar o medo, a dor, o perigo, a incerteza ou a intimidação. Quer dizer, a gente adquire. Aprende a ser corajoso. “Pessoa corajosa é aquela que, mesmo com medo, faz o que tem que fazer”, sei lá quem disse isto. Mas nesta categoria muitos canalhas podem e serão considerados corajosos. Veja por exemplo do sujeito que, por principio, aceita que haja apenas uma cor, uma única cor como fonte de bem, belo e verdade. Ele será considerado por seus pariceiros, corajoso por defendê-la em quaisquer circunstâncias mas, um canalha por todos os adeptos das outras cores. Mas como para aqueles o que importa é a opinião dos amigos, levam suas vidas como se fossem gigantes, bravos indônitos.

Lá em casa? Bem, assisti dois tipos de coragem: do meu pai e meus irmãos, uma coragem que bem podia ser chamada de arrogante, nada reflexiva, puramente formal, um adorno – por dentro tremiam ao som da palavra de um mais forte. O mais forte sendo o que tem mais dinheiro. Afinal, contra o dinheiro não há forte que resista; e a coragem da minha mãe e minhas irmãs: uma coragem do tipo sobrevivente, dolorida, resistente às adversidades em nome de um céu prometido nas intermináveis missas, novenas e pagação de promessas a todos os santos e santas registrados nos missais. De longe, a mais dificil de aguentar. Porque pior, dificil de desdizer. Mamãe repetia, a cada desfeita: “Vai passar, meu filho, vai passar... creia”. Embora sua resignação chegasse a inspirar confiança, logo ruía quando defendia meu pai. Nunca a vi contrariar um mando dele. Talvez o fizesse no silêncio dos lençóis, não sei. Só sei que não conseguiu impedir que ele fosse assassinado, a doze facadas, num beco ermo, a troco de nada; nem a meus irmãos: um, acabou na mão de um polícia que não achou graça da sua resposta a uma abordagem num bordel de quinta; o outro repousa numa cova indigente despossuído do lema predileto: se sólido como, se líquido bebo. Seria a vingança um ato de coragem? Pois é, sobreviver só não basta. A coragem sobrevivente é irracional. É apenas luta por comida e pelo direito de fazer merda.

Sabe, doutor, vamos esquecer este negócio de coragem, vamos tentar outra vertente? Que tal me ajudar a obter algum domínio sobre as minhas ações? Ainda continuo com medo do escuro, doutor. Cago-me todo. No escuro. O senhor não acha que preciso aprender a combater nas trevas? Se até um cego vê que é preciso usar a razão, porque continuo a guiar-me pelo prazer?


2 comentários:

  1. É aquela história de que, às vezes, o medo faz borrar pernas abaixo e, contra o qual, nem meizinhas, nem remédio de doutor. Muito bom!

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  2. Continua muito bom nesta tarefa, escreve cada dia melhor e mais inteligente.

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