Encounter, M.C.Escher, 1944
A
campainha toca justamente quando estou no banho. Por que as
campainhas sempre tocam nestas horas? Vai aqui um tanto do efeito
Carlos Rigot. Não tenho podido escapar da sua influência nestes
últimos meses. Tenho me dedicado a pensar nas suas teorias mais do
que deveria. Mas vá lá, é possível que meu amigo esteja certo em
algo. Com a toalha à guiza de sarongue fui até à porta. Olhei
através do olho mágico: ninguém. Quem terá sido? Decidi abrir.
Nada nem ninguém. Nada, modo de dizer - no capacho jazia um envelope
pardo, meio amassado e gasto pelo uso. Que continha? Voltei para o
banho intrigado com aquela surpresa e depressa cumpri meu ritual
matinal, ansioso. Após servir-me de uma caneca de café, decidi que
era a hora de decifrar aquele mistério. Adivinhem! Num breve
bilhete, com letras de variados formatos e tamanhos, recortadas de
revistas, Rigot desculpava-se por tirar-me dos meus afazeres e
lamentava não tê-lo feito pessoalmente. Solicitava que eu desse uma
passada de olhos numa pequena crônica escrita na última madrugada,
sob o efeito de alguns analgésicos e da decisão de embarcar numa
demorada viagem (sabe-se lá por onde) sem previsão de volta.
Pedia-me ainda a gentileza de, vez ou outra, deixar entrar um pouco
de sol no seu apartamento, e mais: ao encarregar-me da guarda dos
seus escritos (o que demandaria um completa arrumação naquele caos
de coisas suas) pedia que organizasse tudo por título, data e
assunto – aquilo que não se enquadrasse nestas categorias, estaria
eu autorizado a criar meu próprio método de classificação. Estava
tudo lá, era só ter paciência, escrevera. E que me preparasse
para, a cada semana, receber, via correio, dois ou três manuscritos,
os quais deveria aquivá-los digitalmente visto ter eu certo domínio
destas novatas tecnologias. E finalizou: “...se assim decidires,
para conservação da nossa amizade, podes compartilhar com quem
quiseres. Divirta-se.”
Ao meu
amigo, nunca me passaria negar alguma coisa. Bem, talvez negasse duas
ou três. Armas, por exemplo. Jamais guardaria armas para um amigo.
Porque certamente jamais as devolveria. E aí, perderia o amigo.
Portanto, como sei que também vocês possuem amigos e deles recebem
os mais estranhos pedidos, sei que entenderão do porque não me
furtei à tarefa que me designada. E para que meu amigo continue a
apreciar a amizade que lhe dedico, compartilho com vocês um dos
primeiros escritos que encontrei, passado quase um mês desde que
comecei a, duas vezes por semana, sentar-me naquela cadeira de praia
e tentar colocar um pouco de ordem no mundo de Carlos Rigot.
Esclareço que não alterei nada, nem uma vírgula. Digitei tal como
encontra-se no original que agora repousa, dentre muitos, numa
novíssima pasta AZ em cima do guarda-roupas lá de casa - para
desespero da diarista que nunca consegue removê-la sem esforço e
dores costumeiras. Não sei quanto tempo isto vai durar, afinal
prevejo meia dúzia. Talvez o forro do guarda-roupas ceda antes. Bem,
vamos ao compromisso.
Sem
título, agosto de 79. Reminiscências. (Crônica ou Conto?)
“Até
os vinte e cinco anos somos qual a manhã, tudo em nós é
obediencia, pudor, graça e doçura; até os quarenta e cinco, qual o
meio dia, refletimos moderação, coragem, amor, cortesia e lealdade;
até os sesenta, somos o entardecer – tudo em nós almeja
sabedoria, justiça, generosidade, humor e alegria; depois dos
setenta, a noite – só nos resta relembrar com gratidão.
Dante Alighieri
Quando
criança, gostava de brincar de aviador. Deitava o velho velocípede,
de modo que uma das rodas ficasse à altura da sua barriga. Sentava
num caixote de madeira e acomodava outro caixote ao lado. Posicionava
um pedaço de madeira no vão entre as tábuas a simular um cambio.
Elevava a vista e aguardava a passagem dalgum avião. Quando avistava
um, acionava sua máquina e punha-se a guiar o mais pesado que o ar.
E voava... voava... Todos os dias. Embora a “máquina” mais se
assemelhasse a um automóvel, era um avião que pilotava. No alto, no
meio das nuvens, no céu, lá ia a guiar seu numinoso pássaro e
quando este sumia na imensidão daquele azul, o velho velocípede
readquiria a função original: conduzí-lo por estradas
intermináveis no meio da sala enquanto a mãe lhe apontava a colher.
- Ô
apressado e bonito motorista, pare seu lindo caminhão e venha
abastecer. Hoje temos baião de dois e carne do sol assada na panela!
- Só
um pouquinho, dona moça. Preciso manobrar. Vrum... vrum! Depressa,
que tenho uma carga importante que precisa chegar daqui a pouco na
Capital.
Partiu.
Em suas andanças descobriu que sucesso significa morte. Não
tornou-se aviador, tampouco motorista. E como sucesso rima com
posses, acabou num sonho recorrente, labirinto... Corredores,
portas, salas, quartos... Lugares minúsculos, exdrúxulos... Próximo
da saída, acorda com a sensação de que esqueceu alguma coisa em
algum lugar. Chegou a rabiscar: “Ecos que me plangem a memória,
elos gastos, ociosos e malandros, fizeram de mim um instrumento e
agora que sou plano vasto e tardo, com ferros me aplaino e me
desgasto”. A pior coisa que pode acontecer a um humano é
esquecer do próprio destino. Donde vem, para onde vais, meu bom e
interrompido herói?
Pois é...
Infeliz do povo que precisa de heróis, disse Brecht. Herói: sujeito
preparado na arte da sedução; aquele que faz uso de expedientes e
artifícios discutíveis para nos convencer que seu propósito ou o
propósito dos interesses que representa, é o proposito de todos. Se
a crítica, exercida com propriedade, trouxer à consciência as
manobras, trejeitos e artimanhas dos indivíduos na busca de seus
objetivos, das leis e dogmas dos poderes constituídos, faremos
avançar a liberdade, a autonomia e a responsabilidade humanas. Quem
sabe um dia possamos dispensar os heróis! Infelizmente, vivemos
ainda num mundo onde viscejam oportunistas, aventureiros, charlatões,
artistas do sofisma que não descansam na tentativa de nos vender
gato por lebre. Apelos altissonantes reverberam conceitos obsoletos
e, no mais das vezes, cínicos. Vivemos num mundo avançado
tecnologicamente gerido por interesses que beiram o obscurantismo,
senão guiados por propósitos arcaicos e superados, em nome da
segurança e do bem estar - deles próprios. Sangrento altar de
sacrifícios! Apesar dos efeitos visivelmente perniciosos, dos
efeitos devastadores e comprometedores do futuro da raça humana,
certos princípios ainda encontram-se encastelados e fortemente
aparelhados, reproduzindo-se em alta velocidade. A propriedade
privada e a religião são formas de dominação que impedem o
progresso humano. A primeira aprisionando o corpo, a segunda o
espírito. Romper com estes grilhões requer criatividade. Requer
novo conceito de Justiça, reformulação completa do Estado, um novo
Contrato Social. Sobretudo, requer uma nova Mitologia. Onde a lógica
e a retórica empolada de arautos corrompidos pelo poder material,
ávidos de luxo e privilégios, não mais nos seduzam com suas
odisséias improváveis e melancólicas. Nego a fácil cópia e
afirmo a dificil criação. Criar é partir e um dia voltar.
Precisamos de heróis. Heróis diurnos e diuturnos, que nos
emocionem, que nos levem às lágrimas, que nos purguem os pecados,
que nos ensine a compaixão e, sobretudo, que combatam perigos reais
e hipóteses plausíveis. E na eventualidade de combaterem
implausibilidades, que insistam a todo instante em demonstrar que
elaboram jogos, donde possamos extrair juízos que ampliem nossa
sensibilidade e gerem novos e eficazes conhecimentos. Precisamos de
heróis que trabalhem pelo amanhã, o amanhã que fomos ontem”.
Viram?
Meu transparente amigo travava (aguardo ainda trave) um árduo
combate: empreender a volta. Descobrirá o caminho? Com quais
elixires nos brindará ao irromper à porta? Só posso desejar que
constelações o guiem.
"A pior coisa que pode acontecer a um humano é esquecer do próprio destino."... ou a melhor, não? Para que o desejo do amigo se realize...
ResponderExcluirPaulo nem dá para pinçar um frase e comentar, o texto, por inteiro, nos leva e nos desvela Rigot,um Quixote? E o mundo precisa deles que inovam criativiamente até no bojo das velhas formas. E o pedido, ah, adorável!
ResponderExcluirabraços!
Seus textos cada vez ficam mais interessantes. Belo conto.
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