sábado, 1 de outubro de 2011

O Pedido



Encounter, M.C.Escher, 1944


A campainha toca justamente quando estou no banho. Por que as campainhas sempre tocam nestas horas? Vai aqui um tanto do efeito Carlos Rigot. Não tenho podido escapar da sua influência nestes últimos meses. Tenho me dedicado a pensar nas suas teorias mais do que deveria. Mas vá lá, é possível que meu amigo esteja certo em algo. Com a toalha à guiza de sarongue fui até à porta. Olhei através do olho mágico: ninguém. Quem terá sido? Decidi abrir. Nada nem ninguém. Nada, modo de dizer - no capacho jazia um envelope pardo, meio amassado e gasto pelo uso. Que continha? Voltei para o banho intrigado com aquela surpresa e depressa cumpri meu ritual matinal, ansioso. Após servir-me de uma caneca de café, decidi que era a hora de decifrar aquele mistério. Adivinhem! Num breve bilhete, com letras de variados formatos e tamanhos, recortadas de revistas, Rigot desculpava-se por tirar-me dos meus afazeres e lamentava não tê-lo feito pessoalmente. Solicitava que eu desse uma passada de olhos numa pequena crônica escrita na última madrugada, sob o efeito de alguns analgésicos e da decisão de embarcar numa demorada viagem (sabe-se lá por onde) sem previsão de volta. Pedia-me ainda a gentileza de, vez ou outra, deixar entrar um pouco de sol no seu apartamento, e mais: ao encarregar-me da guarda dos seus escritos (o que demandaria um completa arrumação naquele caos de coisas suas) pedia que organizasse tudo por título, data e assunto – aquilo que não se enquadrasse nestas categorias, estaria eu autorizado a criar meu próprio método de classificação. Estava tudo lá, era só ter paciência, escrevera. E que me preparasse para, a cada semana, receber, via correio, dois ou três manuscritos, os quais deveria aquivá-los digitalmente visto ter eu certo domínio destas novatas tecnologias. E finalizou: “...se assim decidires, para conservação da nossa amizade, podes compartilhar com quem quiseres. Divirta-se.”

Ao meu amigo, nunca me passaria negar alguma coisa. Bem, talvez negasse duas ou três. Armas, por exemplo. Jamais guardaria armas para um amigo. Porque certamente jamais as devolveria. E aí, perderia o amigo. Portanto, como sei que também vocês possuem amigos e deles recebem os mais estranhos pedidos, sei que entenderão do porque não me furtei à tarefa que me designada. E para que meu amigo continue a apreciar a amizade que lhe dedico, compartilho com vocês um dos primeiros escritos que encontrei, passado quase um mês desde que comecei a, duas vezes por semana, sentar-me naquela cadeira de praia e tentar colocar um pouco de ordem no mundo de Carlos Rigot. Esclareço que não alterei nada, nem uma vírgula. Digitei tal como encontra-se no original que agora repousa, dentre muitos, numa novíssima pasta AZ em cima do guarda-roupas lá de casa - para desespero da diarista que nunca consegue removê-la sem esforço e dores costumeiras. Não sei quanto tempo isto vai durar, afinal prevejo meia dúzia. Talvez o forro do guarda-roupas ceda antes. Bem, vamos ao compromisso.

Sem título, agosto de 79. Reminiscências. (Crônica ou Conto?)

Até os vinte e cinco anos somos qual a manhã, tudo em nós é obediencia, pudor, graça e doçura; até os quarenta e cinco, qual o meio dia, refletimos moderação, coragem, amor, cortesia e lealdade; até os sesenta, somos o entardecer – tudo em nós almeja sabedoria, justiça, generosidade, humor e alegria; depois dos setenta, a noite – só nos resta relembrar com gratidão.
Dante Alighieri

Quando criança, gostava de brincar de aviador. Deitava o velho velocípede, de modo que uma das rodas ficasse à altura da sua barriga. Sentava num caixote de madeira e acomodava outro caixote ao lado. Posicionava um pedaço de madeira no vão entre as tábuas a simular um cambio. Elevava a vista e aguardava a passagem dalgum avião. Quando avistava um, acionava sua máquina e punha-se a guiar o mais pesado que o ar. E voava... voava... Todos os dias. Embora a “máquina” mais se assemelhasse a um automóvel, era um avião que pilotava. No alto, no meio das nuvens, no céu, lá ia a guiar seu numinoso pássaro e quando este sumia na imensidão daquele azul, o velho velocípede readquiria a função original: conduzí-lo por estradas intermináveis no meio da sala enquanto a mãe lhe apontava a colher.
- Ô apressado e bonito motorista, pare seu lindo caminhão e venha abastecer. Hoje temos baião de dois e carne do sol assada na panela!
- Só um pouquinho, dona moça. Preciso manobrar. Vrum... vrum! Depressa, que tenho uma carga importante que precisa chegar daqui a pouco na Capital.

Partiu. Em suas andanças descobriu que sucesso significa morte. Não tornou-se aviador, tampouco motorista. E como sucesso rima com posses, acabou num sonho recorrente, labirinto... Corredores, portas, salas, quartos... Lugares minúsculos, exdrúxulos... Próximo da saída, acorda com a sensação de que esqueceu alguma coisa em algum lugar. Chegou a rabiscar: “Ecos que me plangem a memória, elos gastos, ociosos e malandros, fizeram de mim um instrumento e agora que sou plano vasto e tardo, com ferros me aplaino e me desgasto”. A pior coisa que pode acontecer a um humano é esquecer do próprio destino. Donde vem, para onde vais, meu bom e interrompido herói?

Pois é... Infeliz do povo que precisa de heróis, disse Brecht. Herói: sujeito preparado na arte da sedução; aquele que faz uso de expedientes e artifícios discutíveis para nos convencer que seu propósito ou o propósito dos interesses que representa, é o proposito de todos. Se a crítica, exercida com propriedade, trouxer à consciência as manobras, trejeitos e artimanhas dos indivíduos na busca de seus objetivos, das leis e dogmas dos poderes constituídos, faremos avançar a liberdade, a autonomia e a responsabilidade humanas. Quem sabe um dia possamos dispensar os heróis! Infelizmente, vivemos ainda num mundo onde viscejam oportunistas, aventureiros, charlatões, artistas do sofisma que não descansam na tentativa de nos vender gato por lebre. Apelos altissonantes reverberam conceitos obsoletos e, no mais das vezes, cínicos. Vivemos num mundo avançado tecnologicamente gerido por interesses que beiram o obscurantismo, senão guiados por propósitos arcaicos e superados, em nome da segurança e do bem estar - deles próprios. Sangrento altar de sacrifícios! Apesar dos efeitos visivelmente perniciosos, dos efeitos devastadores e comprometedores do futuro da raça humana, certos princípios ainda encontram-se encastelados e fortemente aparelhados, reproduzindo-se em alta velocidade. A propriedade privada e a religião são formas de dominação que impedem o progresso humano. A primeira aprisionando o corpo, a segunda o espírito. Romper com estes grilhões requer criatividade. Requer novo conceito de Justiça, reformulação completa do Estado, um novo Contrato Social. Sobretudo, requer uma nova Mitologia. Onde a lógica e a retórica empolada de arautos corrompidos pelo poder material, ávidos de luxo e privilégios, não mais nos seduzam com suas odisséias improváveis e melancólicas. Nego a fácil cópia e afirmo a dificil criação. Criar é partir e um dia voltar. Precisamos de heróis. Heróis diurnos e diuturnos, que nos emocionem, que nos levem às lágrimas, que nos purguem os pecados, que nos ensine a compaixão e, sobretudo, que combatam perigos reais e hipóteses plausíveis. E na eventualidade de combaterem implausibilidades, que insistam a todo instante em demonstrar que elaboram jogos, donde possamos extrair juízos que ampliem nossa sensibilidade e gerem novos e eficazes conhecimentos. Precisamos de heróis que trabalhem pelo amanhã, o amanhã que fomos ontem”.

Viram? Meu transparente amigo travava (aguardo ainda trave) um árduo combate: empreender a volta. Descobrirá o caminho? Com quais elixires nos brindará ao irromper à porta? Só posso desejar que constelações o guiem.  


3 comentários:

  1. "A pior coisa que pode acontecer a um humano é esquecer do próprio destino."... ou a melhor, não? Para que o desejo do amigo se realize...

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  2. Paulo nem dá para pinçar um frase e comentar, o texto, por inteiro, nos leva e nos desvela Rigot,um Quixote? E o mundo precisa deles que inovam criativiamente até no bojo das velhas formas. E o pedido, ah, adorável!

    abraços!

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  3. Seus textos cada vez ficam mais interessantes. Belo conto.

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