domingo, 7 de fevereiro de 2010

Carta à Rosália

São Paulo, 02 de janeiro de 2010.

Minha querida amiga Rosália.
Escrevo estas mal traçadas linhas para saber como vai você e ao mesmo tempo falar um pouco de mim.

Desde que saí daí não tenho parado de pensar no que seria da minha vida se eu tivesse me casado com o Joelmir. Acho que foi melhor assim, agora tenho certeza de que meu casamento com ele não teria dado certo. Ninguém aguenta ser passada para trás assim como ele fez comigo. Na maior cara dura. E ainda por cima com aquela zinha que eu considerava quase como uma parente. Cheguei a levar ela para minha casa quando os pais dela tiveram que se mudar para Brasília. E no que deu você sabe bem. Na noite em que peguei os dois deitados na minha própria cama só pensei em morrer. Mulher nenhuma merece isto. Ainda mais que eu fazia de tudo por ele. Mas deixa pra lá. Vou levar a minha vida e esquecer. É só disso que preciso. E você? Espero que já tenha encontrado o seu príncipe encantado. Não esqueça de me avisar se ele aparecer. Quero acompanhar tudo, tintim por tintim. Não é porque me decepcionei que não vá me alegrar com a tua boa sorte. Desejo sempre o melhor para você. Você sim, é uma verdadeira amiga. Sinto muito a tua falta. Queria que tivesse outro jeito da gente poder conversar.

Olha, Rosália, por aqui vai tudo mais ou menos. Estou trabalhando numa casa de família. Uma agência de emprego me mandou aqui. Ela é médica e ele engenheiro. Mas sabe como é, cada um no seu lugar. Moram num prédio bacana, com piscina, campo de futebol e tal, numa rua onde não passa ônibus, onde não tem um papel de bala pelo chão e tem segurança pra tudo que é lado. Cada prédio tem pelo menos dois homens vestidos de preto no portão e um que fica dentro da guarida. Tem uns que até estão armados. Às vezes sinto como se estivesse vivendo numa prisão. Mas é quase isto mesmo, meu quartinho não tem janela e parece uma caixa de papelão de tão apertado. Se eu tivesse mais estudo talvez conseguisse um emprego melhor mas, isto ainda vai demorar, ainda nem terminei o supletivo. Difícil é encontrar tempo para estudar. Começo meu dia às cinco e meia e tem dia que só consigo parar depois da meia noite. Folgo apenas uma vez por mês. Mas vou levando, como Deus quer. Quem precisa tem que se sujeitar.

O que mais me deixa triste é o modo como eles me tratam. A dona Ximena, minha patroa, vive me repreendendo que não devo falar alto, que falar alto é falta de educação. Que devo tomar cuidado com os espertos, que não posso trazer namorado para o apartamento, que devo tomar muito cuidado para não engravidar. E o seu Horário, o marido dela, não perde ocasião de dizer que falo errado, vive corrigindo tudo que falo, chega a dar agonia. É tanto não devo, não devo isto não devo aquilo, que não devo assistir novelas, que não devo ver o Sílvio Santos, o Gugu mas, o que devo assistir então? Na minha televisão só pega isto. Não é que nem a deles, que parece uma janela, pendurada na parede e só passa programas em inglês, como é que eu posso ter uma dessas se o meu salário mal dá pra eu mandar todo mês o que prometi pra mãe? Outro dia, a dona Ximena disse que devo sempre andar de uniforme quando saio na rua, mesmo nos dias de folga, que a cidade é muito violenta, que é para eu não ser confundida com ladrão, assunta só! Isto já está me enchendo a paciência.

Sabe o que mais me dói? É ser tratada como um leproso. Sabia que nem em sonho empregado pode usar o elevador social? A gente tem uma entrada lateral e só pode usar o elevador de serviço. Os guardas e o porteiro ficam na maior marcação em cima da gente. Parece que nós somos uns condenados. Sei não, esses ricos parece que não cagam, não mijam, não choram, não tem sentimentos. Às vezes penso que eles acham que estão nos prestando um favor por nos empregar em troca de um salário tão mal pago. Ah, sabe que já tem dois meses que não recebo nada? Eles foram passar o fim de ano no estrangeiro, passaram quase vinte dias, e quando voltaram vieram com uma conversa que o limite do cartão tinha estourado e que eu aguentasse uns meses até a situação voltar ao normal. Eu perguntei quando eles iam assinar minha carteira. O seu Horácio me disse que eu não me preocupasse que ele estava vendo se a firma dele pode me contratar mas que isto demora e que eu tivesse paciência. Tenho deixado eles me enrolarem porque você sabe que não conheço ninguém por aqui e não posso voltar para Xaréu, não por agora, ou até conseguir esquecer tudo o que passei por aí.

A vida não tem sido nada boa comigo, Rosália. E ainda por cima tem o filho deles, nem acabou direito de sair das fraldas e vive se engraçando comigo. Sabe o que o safado me disse outro dia? Que se eu deixasse ele entrar no meu quarto de noite, ele me daria uma televisão bem maior que a que os pais me deram. O danado vive me agarrando por trás, na lavanderia, na cozinha, é só o pai e mãe sair pro trabalho começa o meu calvário. Vivo fugindo do engonço. Ele pensa o que, que sou mulher da vida? Você me conhece, Rosália, só vou para a cama com um homem que eu amar de verdade. Talvez este dia nunca aconteça, talvez eu acabe mesmo ficando para tia. Mas não vou ceder de jeito nenhum. Embora o peste pareça um artista de cinema, de tão bonito que é. Mas comigo não, violão. Sei o que ele quer. Não posso bobear, porque nessa parte eu sou o lado mais fraco da corda. Não quero sair daqui com uma uma mão na frente e outra atrás. E se ele me engravidar? Aí sim é que a porca torce o rabo. A família dele vai querer cuidar de mim e do meu filho? Duvido. Pois é, de amargura basta o que já tenho passado. Acho que ele pensa que porque a gente não tem toda a instrução deles não tem caráter, ou que a gente é trouxa. Pois estão muito enganados.

Rosália, quem faz aqui aqui mesmo paga. Veja só como são as coisas. A filha dos meus patrões, nem se formou ainda e, uma noite, durante o jantar ouvi uma conversa de que ela ia para a Europa conhecer o mundo. Nossa, parece que a casa veio abaixo. A dona Ximena disse que nem pensar, que ela tinha que continuar os estudos, que gastaram muito com o estudo dela e ela não podia fazer isto não, que ela ia ficar sem a mesada dela e coisa e tal e sabe o que aconteceu? A menina foi. Juntou o que tinha e foi. Ontem o irmão dela me disse ela que está lá, trabalhando de doméstica para se sustentar. Pode? Só pode ser castigo, não é?

Da sua amiga de sempre,
Claudinete.


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