domingo, 31 de janeiro de 2010

Não levo desaforo para casa

Quando ouço esta frase me lembro da infância. “Não levo desaforo para casa” era quase um lema no meu tempo de menino.
- “Se for homem pisa aqui”! Nenhum menino ia dormir com isto atravessado na garganta, mesmo que lhe custasse o nariz quebrado. A mãe? A mãe era sagrada, ai daquele que não defendesse a sua. Este sentido de honra é da infância da humanidade. Mas a gente cresce e, aos poucos, adquire um certo senso de medida.
Na minha infância não existia esse negócio de tamanho. Quanto maior, mais estrondosa era a queda. Um menino, se comparado a uma “caçola de macaco” não hesitava em pular de um telhado, dormir no cemitério, atravessar a cidade através das galerias pluviais. Um adulto, não, tem noção do perigo, sai pela tangente, diz que a religião não permite, que tem mulher e filhos, engole alguns sapos e faz das tripas coração para adquirir um carro maior e melhor do que o do seu antagonista. Esta é a vingança adulta: ter mais que o outro. Um menino só tem a honra para ser lavada.
Quando se é menino, são muitos os limites e tudo é urgência. Por isso não se levava desaforo para casa. Por que estou escrevendo isto? Talvez, porque pensei que no meu tempo de menino, não existia perdedores, ou melhor, ninguém se sentia perdedor. As cicatrizes eram exibidas como troféus, um indicativo de que não se fugia à luta. E mesmo quando perdiamos se saía vencedor. Havíamos tido a coragem de nos batermos pelo dever de sermos homens. E isto, ninguém nos ensinava, era um código não escrito, coisa de meninos, puro instinto.
Dirão: barbérie, império do mais forte, influência dos faroestes americanos, dos seriados do Jim das Selvas, Nioka, Zorro ou Flash Gordon. Isto, quando não tínhamos nenhuma garota nos arrastando para ver os filmes, cheios de canções e beijos (argh!), do Elvis, da Doris Day ou da Marisol. Mesmos nestes, tinha, vez por outra, troca de sopapos. Ahhh, o cinema vinha baixo quando o herói dava um troco bem dado e merecido no sinistro e metido a besta do valentão dissimulado. Brutos nunca se davam bem, até que veio Os Brutos Também Amam e eles começaram a descobrir em si um pouco de humanidade. A valentia relativou-se e os advogados fizeram a banca, com seus labirínticos argumentos e suas potentosas saídas. Quem Matou o Fascínora se tornou um enigma apenas decifrado entre amigos.
Conheci poucos valentões de verdade, a maioria era de “fritar bolinho em porta de geladeira”! No meu tempo de menino não havia aquele com o qual ninguém podia. O malvado, malvado mesmo, era um pária. Numa briga, sem que ninguém nos avisasse sabíamos a hora exata de parar, era quando olhavámos nos olhos do outro e enxergavamos a nossa própria fraqueza, às vezes na forma de um filete de sangue escorrendo de algum membro indefeso. Era dolorido, sabíamos, o sofrimento imposto, o sofrimento além das forças, ficavámos com as penugens arrepiadas diante das cenas finais da Vida, Paixão e Morte do Nosso Senhor Jesus Cristo. Não desejavamos aquilo para ninguém, nem para o nosso pior inimigo. Não erámos cínicos. Crianças, embora atrevidas, não são descaradas.
Maior não brigava com menor. Acaso houvesse uma afronta ou ofensa entre desiguais, equilibrava-se imediatamente a contenda: dois ou três pequenos contra um grande. E não havia vanglória na vitória (exceção: quando se queria impressionar as meninas). Não conhecíamos a palavra vingança. Ninguém sofria mais que podia, um simples “pára” ou “lona” encerrava o combate. O que era resolvido numa briga, acabava ali e ponto final. Depois íamos todos para a praça e o vida voltava ao seu normal.
Quer dizer, até entrarmos em casa. Qualquer que fosse o resultado, ganhando ou perdendo, preparavámos para pior: repreensão, orelhas puxadas, uma ou outra cinturadas e, sobretudo, boca fechada e choro contido direto para o castigo, certos de que brigar é coisa feia e gente civilizada não se presta a isto.


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