quinta-feira, 31 de dezembro de 2009

Ensaio sobre a Cegueira

Não li o livro mas vi o filme. Saí com a sensação de ter assistido a um thriller meio envergonhado. Esperava outra coisa. Talvez eu estivesse um tanto influenciado por aquela cena magistralmente descrita, pelo afiadissimo Eça de Queiroz, no final de O Crime de Padre Amaro. Reproduzirei a passagem para que vocês percebam do que estou falando.

Presentes o Padre Amaro, o Conego Dias e o Conde de Ribamar, juntos a estátua de Luiz de Camões. Lamentam o fato de alguns “enturrados” dizerem tolices sobre a decadência de Portugal.

Mas, deixemos ao Eça a precisão desta supimpa pincelada.

“- A verdade, meus senhores, é que os estrangeiros invejam-nos... E o que vou dizer não é para elogiar vossas senhorias: mas enquanto houver neste pais sacerdotes respeitáveis como vossas senhorias, Portugal há de manter com dignidade seu lugar na Europa! Porque a fé, meus senhores, é a base da ordem!
- Sem dúvida, senhor conde, sem dúvida, disseram com força os dois sacerdotes.
- Senão, vejam vossas senhorias isto! Que paz, que animação, que prosperidade
!”

E agora vem o melhor da festa.

E com grande gesto mostrava-lhes o Largo do Loreto, que àquela hora, num fim de tarde serena, concentrava a vida da cidade. Tipóias vazias rodavam devagar; pares de senhoras passavam de cuia cheia e tacão alto, com os movimentos derreados, a palidez clorótica duma degeneração da raça; nalguma magra pileca, ia trotanto algum moço de nome histórico, com a face ainda esverdeada da noitada de vinho; pelos bancos da praça gente estirava-se num torpor de vadiagem; um carro de bois, aos solavancos sobre suas altas rodas, era como o símbolo de agriculturas atrazadas de séculos; fadistas gingavam, de cigarro nos dentes; algum burguês enfastiado lia nos cartazes o anúncio de operetas obsoletas; nas faces enfezadas de operários havia como a personificação de indústrias morimbundas... e todo este mundo decrépido se movia lentamente, sob um céu lustroso de clima rico, entre garotos apregoando a lotaria e a botota pública, e rapazitos de voz plangente oferecendo o Jornal das Pequenas Novidades: e iam num vagar madraço. Entre o largo onde se erguiam duas fachadas tristes de igreja, e o renque comprido das casarias da praça onde brilhavam três tabuletas de casas de penhores, negrejavam quatro entradas de tabernas, e desembocavam, com um tom sujo de esgoto aberto, as vielas de todo um bairro de prostituição e crime.
- Vejam, ia dizendo o conde: vejam toda esta paz, esta prosperidade, este contentamento... meus senhores, não admira realmente que sejamos a inveja da Europa!
E o homem de Estado, os dois homens de religião, todos os três em linha, junto as grades do monumento, gozavam de cabeça alta esta certeza gloriosa da grandeza do seu pais – ali ao pe daquele pedestal, sob o olhar frio de bronze do velho poeta, ereto e nobre
”.

O pior cego é aquele que não quer ver. Ops, será que fui injusto com o filme do Meireles?

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