sábado, 8 de junho de 2024

cinco sentidos

 

Allegory of the five senses, Theodoor Rombouts, 1632



o perfume que vem da casa ao lado

o alarido juvenil a afastar demônios

os latidos dos cães na madrugada

o ruido das ondas a descansar na praia

o gotejar da chuva na telha de flandres

a ventania que assusta os coqueiros

e a lembrança daquele amor que partiu


a sala úmida cheira a passado

e o frango com verduras que fiz ontem

me faz pensar em dormir e sonhar

até que a tarde vista o manto noturno

e acalente no colo o bebê chorão

que deseja crescer e ir pra rua aprender

a alegria quente e fria do são joão


os olhares ameaçadores dos homens, eis!

e a indiferença de suas mulheres,

maquiadas adolescentes esquecidas

de suas velhas mães banguelas

que puxam conversa no coletivo

e despertam o fingimento covarde

das pretensões burguesas televisionadas


nas ignorâncias demasiadas

meu próximo é um concorrente

devo simular que posso (quero crer)

e apertar a campainha, descer no ponto

que, neste começo de noite, me cabe…

quem sabe sinta o perfume que a vizinha exala

e ouça a criançada a botar pra correr os demônios 


 

sábado, 1 de junho de 2024

antipodemia

 

The Ancient of Days, William Blake, 1794




viver acossado por fantasmas

ou curtir happy hour todo santo dia


cultuar o uniforme, o igual

ou na diversidade sentir-se íntegro


ter opinião sobre as coisas

ou nada saber sobretudo


almejar a liberdade e jamais decidir per si

ou definir por si o limite da própria liberdade


esperar, com sofreguidão, o apocalipse

ou curtir o carnaval em Olinda ou Salvador


deixar-se possuir pela raiva

ou rir de si mesmo


comemorar a vitória pública

ou endeusar o poder privado


exaltar heróis – modelos de perfeição

ou tê-los apenas como exemplos


combater sonhos lúdicos libidinosos

ou se entregar ao amor infinito se fosse


buscar o fim do tormento no flagelo

ou se masturbar vez ou outra


exigir de si pra si livramento e fortuna

ou viver entre os lírios do campo


negar o engenho humano

ou acreditar na vontade da potência


escalar uma montanha de joelhos

ou caminhar nas praias alagoanas


apesar de tudo ter um mestre e guia

ou ser criador e criatura de si mesmo?


 

sábado, 25 de maio de 2024

O Personagem que Sou

 

Untã Rori - Pintura Rupestre, Duhigó, 2014


Era uma vez o dia em que pensei: porque estamos sempre a adiar a hora de dizer, com relativa fidelidade, quem somos de fato.

Fui uma criança de certo modo isolada, morava numa casa velha, recuada, numa rua abandonada em cujo quintal em declive havia um imenso e frondoso capinzal.

Perto da porta da cozinha vivia um magro pé de pinha. Sossegado, mas de gênio muito forte. Dava pra sentir e ver que era um pé de planta rebelde, cioso da sua própria liberdade: produzia apenas um fruto por vez, caso tivesse vontade.

Numa dessas manhãs costumeiras, tal qual qualquer criança envolvida com suas artes, dei pernas a um projeto de me tornar, sem dúvida, lambança ou excentricidade, um homem das cavernas.

E foi assim que, com ajuda de uma colher, cavei um solitário buraco com fundura suficiente para acomodar alguns teréns que julguei necessários ao meu conforto: um lençol rasgado, um caixote velho e uma encardida panela.

Satisfeito, acreditei que viveria ali para sempre ou, eventualmente, pelo tempo em que ficasse de mal com mainha.

Após alguns segundos percebi que o buraco era por demais achatado, não me cabia nem mesmo agachado… Mas, embora o lugar fosse mal-ajambrado, improvisei uma cortina com um pedaço de uma velha toalha de plástico para me separar do mundo onde me sentia clandestino.

E ainda hoje me vejo, sentado no meu trono adotivo cercado por aquela terra amarela – um lar e um reino.

Mas um pensamento tagarela me assaltou: viveria do quê? Rio e mar não haviam por perto… Então seria caçador sem dó nem piedade, abateria bicho voante, rastejante e roedor – era isso ou morrer de barriga vazia todo dia antes de dormir.

Sorte minha que trouxera um estilingue e lá se foi uma avezinha que fizera ninho do pé de pinha… Uma pedra arremessada, certeira, acertou-lhe a cabecinha. E havia uma panela. Fogo não foi problema e logo, com auxílio da água da pia e um pouco sal surripiado do pacote no alto da prateleira, meu almoço pré-histórico estava pronto – foi um tantinho de nada (e nenhum prazer senti).

Garanto, a experiência não foi legal. Esperava mais. Estava exausto e com fome: trabalhara muito por tão pouco.

Já havia desistido antes de várias empreitadas e não foi difícil jogar fora essa minha breve ideia de vida neandertal.

Regressei à casa, acostumado e pesaroso à prosa silenciosa que mantinha com o ambiente do meu quarto. O tecido esvoaçante que se fingia de porta, as telhas gotejantes e o uivo do assombroso do vento embalavam minha esperança de um dia ultrapassar o temor, a ansiedade, a aflição e a incerteza de tornar-me o personagem que hoje sou.