sábado, 18 de novembro de 2023

Mural das Indiscrições XI

 

Forms in space, Fernand Léger, 1950



– A vida é boa, mas quando a gente morre sente saudade de quase nada.


– As cidades são democraticamente desagradáveis.


– Existem três brasis: o capitalista, o socialista e o degradado.


– A falha moral do brasileiro é que ele é solidário.


– Deus tem dado o frio conforme o delator.


– Todo brucutu tem autoestima elevada.


– O capeta só possui quem nele acredita.


– Uma mentira é consequência de uma afirmação anterior.


– O tanto que sei é nada diante daquilo que não sei.


– A lei só é boa quando aplicada ao outro.


– Abundam por aí sujeitos cujo propósito é comer, fazer m… e peidar pela boca.


– Crentes anunciam a cura gay e a ciência nos deve a cura imbecil.


– Quando a ciência deixou a hipótese deus para lá, logo se criou a mão invisível do mercado.


– O apocalipse já aconteceu, estamos na fase onde a natureza se vinga.



sábado, 11 de novembro de 2023

O manifesto

 


Dall-E, 10/11/23



Em 3070, um grupo de arqueólogos encontraram, nos Arquivos Gerais do Estado, desprovido de qualquer catalogação, o documento que reproduzo abaixo. Quem o escreveu, a quais objetivos e interesses ele servia, perguntaram-se os cientistas diante de uma montanha de incertezas. Três anos após a descoberta, alguns consideram a possibilidade daquilo ter sido uma brincadeira de algum servidor numa crise de tédio em uma repartição. Outros afirmaram que, se brincadeira, era de muito mau gosto. Mas, dado que toda polêmica se torna obsoleta quando surge um novo fato capaz de galvanizar a opinião geral, o documento acabou esquecido em alguma gaveta, em razão do divórcio de um casal de celebridades da cena artística. E assim passou mais um século, até que num belo dia surge, nas redes sociais, um vídeo com um gaiato lendo, do alto de um púlpito, para uma plateia ruidosamente descontrolada, um texto que, jurava de pés junto, ter sido ditado a ele, numa tarde reflexiva, numa grama verde, debaixo de uma árvore frondosa, de sombra amena e bons frutos, por uma entidade divinal criadora de tudo e de todos. Sabendo que direito autoral é extinto setenta anos após a morte do autor, e que o conteúdo deste documento é tão absurdo que somente poderia ter sido escrito numa época de barbárie e ignorância (condição política impraticável no século XXIII, afinal a consciência humana atingira níveis extraordinários possibilitando a resolução de todos os problemas sociais) impossível levantar-se contra o sujeito acusação de furto, roubo, apropriação indébita ou qualquer ilícito do gênero. Contudo, o documento e o episódio nos alerta que é preciso ser forte, manter as barbas de molho e a pulga sempre atrás da orelha, já que o bom senso nos avisa que loucos e doidos os há até no paraíso. Segue o texto...

 

MANIFESTO PELA MORAL, BONS COSTUMES, COM DEUS ACIMA DE TUDO E DE TODOS

 

Em tempos de verdades, nuas, cruas e bestiais, praticamos uma política descaradamente sem vergonha, sem freios, papas na língua ou controle de qualidade… portanto, para uma sociedade livre de maricas, propomos:

- Dividir o mundo entre o bem e o mal e nos fixarmos acima dos dois com uma boa margem de segurança;

- Inventar diariamente um bode expiatório e colar nele a pior imagem que temos de nós mesmos;

- Atacar alguns pornograficamente, e defender desavergonhadamente outros;

- Demonizar as minorias;

- Nunca brigar diretamente nossas brigas, ter sempre uma tropa de jagunços para dar um fim na questão;

- Culpar sempre a vítima;

- Terceirizar a morte de, pelo menos, um prejudicado por dia;

- Humilhar os sobreviventes, sem trégua e sem remorso, até que desistam de si e passem a acreditar que, longe de nós, não há salvação;

- Disseminar ódio e nojo a tudo que for singular, diferente e/ou divergente;

- Jamais dar satisfação a quem quer que seja, afinal nossa liberdade é sagrada e ninguém paga nossas contas;

- Manter e aprofundar o sistema de classes e a isto chamar de meritocracia;

- Transformar em virtude tudo o que em nós for banal, venal e/ou imoral;

- Ter sempre à mão uma mídia que infantilize e imbecilize o maior número de mentes disponíveis;

- Sempre que formos flagrados em malfeito, apontar imediatamente o malfeito de outro;

- Fazer de um tudo para destruir o estado sem que isto nos impeça, no entanto, de tirar dele o máximo proveito;

- Explorar, mas explorar muito, sem deixar de acusar os explorados de preguiçosos, vagabundos e indolentes;

- Jamais assumir nossa torpeza ou nossos erros de português, porque o segredo do sucesso está em acreditar piamente na própria mentira;

- Jamais viver sozinhos nosso próprio inferno… dar um jeito de compartilhá-lo com o maior número possível de sujeitos.


 


sábado, 4 de novembro de 2023

Nascido para morrer

 

A Morte de Marat, Jacques-Louis David, 1793


Duda formou-se em Educação Artística. E foi dar aula.

Professor, na minha opinião, arte é coisa de viado. A classe desabou na risada. Era assim, quase todo dia.

Em casa não era diferente. O pai o queria advogado, médico ou engenheiro… a mãe sonhava-o padre… as tias e as irmãs bem que queriam vê-lo vereador, talvez prefeito… Era um garoto esperto, todo mundo falava: vai ser grande na vida!

A cigana que o jogou contra a parede do Cine São Luiz, em plena rua do Comércio, vaticinou, numa tarde maio, que enfrentaria tudo e todos mas terminaria coberto pela fama.

Desacreditava do destino mas na cigana acreditou. Faria a diferença, sim senhor. Saiu da casa dos pais, alugou um apartamento, evitou ao máximo a convivência familiar e se lançou a pesquisar o folclore, incentivar os jovens a olharem para o passado com reverência e, quem sabe, obterem meios de alcançarem uma expressão artística, e por via de consequência uma postura ética. Afinal, considerava a experiência artística o suprassumo da existência humana.

E decidiu começar sua jornada investigando aqueles que, sem quaisquer referências, conseguiam se expressar com autêntica beleza… Se envolveu com os folguedos, as danças, o teatro mamulengo, os cantadores, os repentistas, a literatura de cordel… Tornou pra si familiar aquele universo, vivenciou aquilo que o povo, movido apenas pela necessidade de se entreter, produzia encanto suficiente para abrir as portas da percepção e alcançar o inusitado, o inusual, o estranho… Encontrou um meio de sair do seu mundinho cotidiano de contas a pagar, guiado por uma moral mesquinha e foi adiante, repleto de possibilidades, perspectivas, aceitação e, sobretudo, alegrias.

Porém, por ainda viver cindido entre a rejeição e a comunhão, e ansiando a soma, a multiplicação, abriu as portas do seu refúgio (e do seu coração) a quem quisesse compartilhar da sua utópica visão prazerosa de estar no mundo. Juntou uma meia dúzia de iguais.

Contudo, boas intenções são vigiadas de perto por vermes. E quase como um mantra, nesse mundo de prazeres sofridos e escassos, eis que nosso protagonista é alcançado, numa tardinha de sábado (de olho no domingo de praia com uns chegados, boa conversa, comida farta, leõezinhos…), por um flerte fácil, tenro… Superficial, mas aveludado.

Na madrugada, a polícia civil foi acionada por um vizinho que estranhou esquisito zunzunzum… Duda fora encontrado estrangulado, apunhalado sete vezes e o coração arrancado.

Ao meio dia, quando a família chegou, todo o acervo acumulado pela vítima, ao longo de seus tantos anos à frente da Diretoria de Cultura Popular do Estado, foi transformado em lixo, queimado, esquecido.

Um amigo conseguiu chegar a tempo de salvar algumas peças e ouvir, entre resmungos e imprecações a sentença do pai:

- Arte é coisa de viado. Foi ela que fez do meu filho um invertido, disse, mutilando uma das telas naif que o filho exibia no centro da sala, repleta de máscaras, fotos e estantes apinhadas de livros. Tudo inútil, nada o salvou…