sábado, 20 de agosto de 2022

gastura

 

Finger Snack, Christian Ludwig Attersee, 1965


ontem sonhei com fulana:

danado é que

não lembro mais da sua aparência

faz tanto tempo desde

qu’eu ficava horas

ouvindo sua voz

mansa

a dizer coisas

que me bagunçavam por dentro

sem saber como dizer não…


ontem, pra variar

ela cuidou de esfregar

os dedos dos pés

carinhosamente

no meu rosto

que de tão íntimos

desculpei o cheiro acre

que exalava dos seus dedinhos…


fulana sempre me tratou bem

verdade,

mas o drama

é que eu passei o sono inteiro

temendo ser flagrado

acariciando aqueles pezinhos bofedidos,

que acordei exausto com o esforço que fiz

para o marido dela não dar as caras no sonho.


 

sábado, 13 de agosto de 2022

epifania

 

The Musician Angel, Vicenzo Irolli, 1905


a alma é vasta

dificultosa jornada…

quem atinge metade do caminho?

sem a ajuda da poesia

mãe de infinitos, ó gente!


ah, rouxinol, tu não tens sexo…

anjo que abrandas, paterno

as cruezas da alma


e quanto a ti, cotovia

te bem sei graça, repertório

sublime da liberdade…


trindade maviosa:

estremece o coração,

desperta no sonho

inesperada melodia,

súbita compreensão…


 

sábado, 6 de agosto de 2022

quatro quadras

 

Il poeta, Francesco Didioni, 1862



na hora da minha morte

os ponteiros dos relógios

desistirão de perseguir a rotina

e ficarei a mercê do nada

            ...

na minha inocência de criança

pai é aquele que afugenta

o monstro debaixo da cama

enquanto a mãe constrói o futuro

            ...

o animal humano

amontoado de carências

inseguranças e incertezas

costuma morder

                        ...

amor,

não me acorde amanhã

não quero sentir saudade

do que vivemos hoje