sábado, 6 de agosto de 2022

quatro quadras

 

Il poeta, Francesco Didioni, 1862



na hora da minha morte

os ponteiros dos relógios

desistirão de perseguir a rotina

e ficarei a mercê do nada

            ...

na minha inocência de criança

pai é aquele que afugenta

o monstro debaixo da cama

enquanto a mãe constrói o futuro

            ...

o animal humano

amontoado de carências

inseguranças e incertezas

costuma morder

                        ...

amor,

não me acorde amanhã

não quero sentir saudade

do que vivemos hoje


 

sábado, 30 de julho de 2022

fardo

 

Os Portadores de Fardo, Vicent van Gogh. 1881


é um fardo ser

eu que já fui fardo para minha mãe

para os meus amigos

para os meus amores

que passo boa parte do tempo

a arrastar correntes fantasmagóricas

que mesmo dificultoso

nunca me deixei ir que nem pedra

ladeira abaixo despencado

mas ao contrário sempre insisti

em empurrar morro acima

a peso de ser eu…


almejei ser pluma um dia

porém o máximo que consegui

foi esvoaçar vagabundo

feito saco plástico

tangido pela ventania

em plena praça pública

silenciosa e vazia


é um fardo ser eu

que nunca me molestei por minhas faltas

que nunca encarei as minhas falhas

que nunca ri da minha gravidade

que nunca arremessei longe a carga

e mesmo desconfortável

ainda me dou tanta importância

ainda me ufano das minhas pretensões

ainda nutro esperança de um dia virar estátua

e servir de cagadouro para pássaros


 

sábado, 23 de julho de 2022

instante 49

 

Nu, George Seeley, 1910


me recolhi

acendi o candeeiro

sussurrei canções de ninar

deitei no colo da Terra

e quietei

a observar a semente

cumprir seu propósito:

nascer

na primavera…