sábado, 9 de julho de 2022

minhas amigas

 

Cinco Garotas de Guaratinguetá, Di Cavalcanti, 1930


minhas amigas me gostam

mas isto não impede que desconfiem de mim,

repleto de más intenções


não são bobas, minhas amigas

conhecem minha fraqueza

sabem dos meus olhos travessos

a brecharem axilas, covinhas, dobrinhas…


ah, que me matem os decotes epifânicos

blusas epidérmicas

saias serelepes

joelhos atrevidos

curvas que enchem a boca d’água

               e fazem a gente perder o folego


que não me flagrem, as amigas,

num olhar inescrupuloso, fraco e babão…

que fiquem a rir

do meu jeito sátiro, pouco homem


adoro minhas amigas…

um dia, melhorado,

nego que escrevi estas linhas

e me caso com uma delas


 

sábado, 2 de julho de 2022

Composição 4

 

Composition VIII, Wassily Kandinsky, 1923



(Viver imerso na real

De olho naquilo que é fake)

O amor disse ontem que me ama.


Probidade não se jura

Tendo o mundo na vitrine

Nosso afeto que ilumine

A potência da ternura


 

sábado, 25 de junho de 2022

infimidade

 

Templo dos Dez Mil Budas, Hong Kong


uma vez disse a um amigo

que não suportaria

um ente querido morrer antes de mim,

sofreria muito,

preferiria ir primeiro…

ele, espantado, me olhou nos olhos e respondeu:

que pensamento egoísta

pois desejo ser o último a partir

quero que, enquanto puder,

na última despedida dos meus

seja minha a mão a dizer adeus


demorei para compreender essa lógica

mas ponderei: - já pensou?

quando me apartar

em vez de solidão e vazio

ser saudado por todos

que, alegre, saudamos no partir


e este passou a ser o meu mantra

não me preocupar com a partida

afinal – eis o meu conforto

imaginar que há sempre alguém a nos saudar e honrar


não trato aqui de religião

não frequento culto

tampouco trabalho para erguer igrejas

apenas me presto a encontrar amigos

no sagrado templo eventual de um bar

onde, naturais, fazemos libações

cantamos a existência

e saudamos a viva alegria de ainda estarmos aqui

a testificar um instante

um tantinho de memória

uma nesga de lembrança

na santidade dos amados que partiram

sem jamais mencionarmos que morreram


por isto, digo: no dia em que me for

por favor, camaradas, façam alarde

se enfeitem, cantem, dancem,

comam, bebam, gargalhem

dêem vivas, gritem hurra

vossa alegria há de expurgar os meus defeitos

e fazer germinar virtudes

jamais sonhadas

pois eu, átomo,

invisível e silencioso

ao me juntar à vastidão do universo

serei mais ínfimo do que sou agora