sábado, 19 de fevereiro de 2022

ora, ouço estrelas

 

O Homem Amarelo, Anita Malfatti, 1917


abandono o passado

(essa sugestão),

e o que trouxer de abuso

 

faminto perscruto o futuro,

as tais coisas novas

pessoas, ideias

projetos…


a farofa e a carne seca me enchem o bucho,

a pimenta me anima

teço no presente novo figurino

 descuidado

refresco a encobrir a pele

 curtida em sal, sol e fúria

e exibido, passeio, aos domingos - 

os pés plantados neste massapé cansado e trêmulo…


se o que não mata engorda

bebo na fonte do destempero

e sigo

degustando a carne de heróis:

sim, eu imperfeito, canibal, ainda escolho

ouvir estrelas e fazer graça pra plateia

 cuspindo fora

 todo sub e sobre-humano


oh, terra zoada de são saruê

senhora

mágica maravilhosa

olhos que esquecem

o dia que tudo houve

história que não serve ao poema

e tampouco vem ao caso

aos nossos sonhos melhores…


pairo feito grito acima do dilúvio

(que após tantos séculos

ainda escorre ribanceiras abaixo)...

 

minha goela inundada clama

por outro quebra galho

outra terra à vista – lá

donde jamais deveria ter saído,

onde eu era só amor e ponto final

(mas dado meu histórico de poeta

posso estar redondamente enganado)



sábado, 12 de fevereiro de 2022

amor e alma

 

Love and Psyche, Henrik Siemiradzki, 1894




o amor nada tem de silencioso

senhor

o amor é ruidoso

qual sinfonia do amanhecer

onde a natureza

e o engenho humano,

celebram o milagre da vida…


o amor é barulhento, nervoso

diga-nos o amante,

incontido,

que quer que todos saibam

da sua alegria e prazer

quando a paixão começa

e do seu desespero e mágoa

assim que o amor acaba


diante dessa travessa divindade

apenas os descrentes,

ignorantes da agonia gozosa da vida,

silenciam – tão pobres e frios,

insensíveis à centelha

que faz arder desígnios buliçosos

em nossa decantada alma



sábado, 5 de fevereiro de 2022

paraíso cruel

 

The Marriage of Heaven and Hell, Keith Haring, 1984


moro num país onde se rouba,

violenta, estupra, tortura, mata,

sonega, saqueia, odeia, difama

desmanda, distorce, explora,

manipula,

escraviza…


e depois exige (talvez até compre)

o perdão de deus


quanto sangue inocente

é preciso

para zerar tantos pecados?


vergonha, remorso, arrependimento…

definitivamente

não fazem parte do nosso portfólio.