sábado, 2 de agosto de 2025

Parágrafos Joias

 

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 A coisa mais misericordiosa do mundo, creio eu, é a incapacidade da mente humana em correlacionar todo o seu conteúdo. Vivemos numa plácida ilha de ignorância em meio a negros mares de infinito, e não está escrito pela Providência que devemos viajar longe. As ciências, cada uma progredindo em sua própria direção, têm até agora nos causado pouco dano; mas um dia a junção do conhecimento dissociado abrirá visões tão terríveis da realidade e de nossa apavorante situação nela, que provavelmente ficaremos loucos por causa dessa revelação ou fugiremos dessa luz mortal rumo à paz e à segurança de uma nova Idade das Trevas." 

H.P.Lovecraft, O Chamado de Cthulhu

 

Havia muita podridão nos partidos, todos embolsavam propinas. Foi aí que se pensou num partido de cidadãos capazes de falar de uma política diferente. Um partido de homens honestos. Daí foi preciso que os honestos se infiltrassem entre os desonestos para desmascará-los e convertê-los à honestidade. Mas para poderem ser aceitos pelos desonestos os integrantes da liga precisavam se comportar de modo desonesto. A liga dos honestos aos poucos se transformou na liga dos desonestos”. 

Umberto Eco, Número Zero

 

- Me deixa pegar, Bibiana. - Espere. Foi quando coloquei o metal na boca, tamanha era a vontade de sentir seu gosto, e, quase ao mesmo tempo, a faca foi retirada de forma violenta. Meus olhos ficaram perplexos, vidrados nos olhos de Belonísia, que agora também levava o metal à boca. Junto com o sabor de metal que ficou em meu paladar se juntou o gosto do sangue quente, que escorria pelo canto de minha boca semiaberta, e passou a gotejar de meu queixo. O sangue se pôs a embotar de novo o tecido encardido e de nódoas escuras que recobria a faca”. 

Itamar Vieira Junior, Torto Arado 




sábado, 26 de julho de 2025

Falares bem ditos

 


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Deus come escondido e o Diabo sai por toda parte lambendo o prato”.

Guimarães Rosa, escritor

 

Entregar às crianças algo com que elas possam surpreender os pais é um dos maiores presentes que um professor pode dar”.

Richard Dawkins, biólogo


Não há nada ao sul do Polo Sul, portanto não havia nada antes do Big-Bang”.

Stephen Hawking, físico


O contínuo espaço-tempo é uma superfície fechada sem fim, como a superfície da Terra, sobre a qual podemos seguir caminhando eternamente sem cair dela”.

James Hartle, físico


O amor é vapor d'água nos olhos ferventes da paixão”.

Tuca Zamagna, poeta


O que torna a vida tão bela é que ela só acontece uma vez”.

Emily Dickinson, poetisa


 


sábado, 19 de julho de 2025

As tigelas de ouro

 

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Euclides da Cunha, ao falar sobre Canudos, escreveu que o nordestino é, antes de tudo, um forte. Outro dia Betinha, minha prima, me mandou um texto onde o autor dizia que, nós nordestinos, enfrentamos o medo com destemor. As duas definições são verdadeiras mas força e a coragem nada seriam sem astúcia, concluo eu.

A história que vou contar, ouvi da minha mãe. Anos depois a encontrei num livro de fábulas italianas do Ítalo Calvino. Aqui, para deleite, apresento minha versão. 

Valente, tinha perdido pai e mãe. Sem eira nem beira, decidiu sair pelo mundo em busca de fortuna. Ao parar numa pousada, o dono avisou que não havia vaga mas, se ele fosse corajoso podia dormir no casarão abandonado que ficava no alto de um morro que dominava o lugarejo e que lhe daria um candeeiro, uma garrafa de jurubeba e um pedaço de carne seca, afinal aquele casarão era mal-assombrado e ninguém saía de lá vivo. O desafio foi aceito na hora.

Quando deu meia-noite, ao comer um naco de carne, Valente ouviu, saindo da cumeeira, uma voz: – Posso jogar? Tomou um gole de jurubeba e disse que se jogasse logo e uma perna caiu no assoalho. Outro gole e a voz tornou: - Posso jogar? Jogue, ora. E outra perna caiu no assoalho.

Continuou a comer e beber tranquilamente enquanto a voz pedia se podia jogar. Irritado, Valente, disse que se jogasse de uma vez porque precisava dormir. Caiu um braço, depois outro e, por fim, uma cabeça. Quanto todos as partes se juntaram apareceu um homem cuja altura batia no teto.

Valente ergueu o copo e disse: - Saúde! O homão olhou bem pra ele, examinou-o de cima a baixo e ordenou: - Pegue o candeeiro e venha comigo.

Valente pegou o candeeiro mas não se mexeu. O gigante disse: - Passe na frente. Que ele passasse primeiro, respondeu Valente. Então o sujeito se adiantou e de sala em sala atravessou o casarão. Debaixo de uma escadaria havia uma portinhola. - Abra. Abra você, respondeu Valente.

E o homem abriu com um empurrão. Havia uma escada em caracol. - Desça. Primeiro você, disse Valente. Desceram a um subterrâneo e o homem indicou uma laje no chão. - Levante. Levante você, disse Valente. O camarada a ergueu como se fosse uma pedrinha. Embaixo havia três tigelas cheias de moedas de ouro. - Leva para cima. Leve para cima você, disse Valente. E o homem levou uma de cada vez para cima.

Novamente no salão principal a aparição falou: - Quebrou-se o encanto. Uma perna jogou-se pro alto. - Destas três tigelas uma é sua. Um braço subiu. - Outra é para o dono da pousada que virá buscá-lo pensando que você está morto. Outro braço se depreendeu e sumiu na cumeeira. - A terceira é para o primeiro pobre que passar. A outra perna subiu. - O casarão é teu, disse a cabeça sozinha no chão, porque toda a linhagem dos donos se perdeu para sempre. E a cabeça levitou e sumiu por entre as telhas.

Assim que o céu clareou o comerciante veio com o caixão para recolher o morto. Mas encontrou Valente sentado na janela e logo lhe entregou a segunda tigela. Morou feliz no casarão por muitos e muitos anos.

Até que um dia aconteceu ver uma sombra. Levou um susto tão grande que bateu as botas, sem ter entregue a tigela destinada ao primeiro pobre que por ali passasse”.