sábado, 27 de janeiro de 2024

O velho barbudo da casa de fundos

 

Google Imagens




Em geral, o sujeito adulto perde a curiosidade deixando no lugar o sentimento fofoqueiro de saber e se deliciar com os segredos e as desgraças dos outros. A criança não. A criança olha, vê e quer saber de tudo.

Na rua de cima, havia um portão amarelo, com uma sineta por campainha. As crianças que moravam por ali adoravam competir pra ver quem conseguiria tocar mais vezes aquele sino na vã tentativa de fazer com que o velho barbudo que morava no fim daquele corredor estreito e escuro viesse até o portão e dissesse alguma coisa, qualquer coisa: era o desejo secreto de cada um – ver e ouvir aquele estranho se manifestar, já que o comum é vê-lo subir com esforço a pequena ladeira, sem dizer palavra, até a casa que nenhuma daquelas crianças fazia a menor ideia como seria.

Seria um bruxo, um feiticeiro capaz de transformar cada um em sapo ou coisa pior, só pelo prazer de castigá-lo pela perturbação? Seria sua casa um buraco que ia dar no fim do mundo? Se sabia atiçar todos os cachorros na madrugada, fazendo-os latir mais que o habitual, seria ele um comedor de gente, um lobisomem, um vampiro, um diabo disfarçado de gente?

E todos acabavam indo dormir, obrigado ou não, com a pergunta martelando na mente: Quem era aquele velho silencioso e taciturno que vez por outra levava a paralisação da brincadeira para todos pudessem observar os passos exaustos que ele insistia em continuar praticando em direção à sua casa misteriosa.

Alguns adultos, por força de circunstâncias, visitaram a casa do velho barbudo, viram o que era pra ver mas não fizeram esforço para aliviar a imaginação das crianças, afinal não faziam ideia do que as perturbavam nem tampouco sabiam como satisfazer suas dúvidas e interrogações.

E elas, reunidas, no cair da noite, brincavam com intensa alegria. O velho barbudo ouviu um ou outro choro mas compreendia que era apenas um conflito com uma mãe que a queria na cama ou no banho.

E nestas horas em que até os cães se calavam, o velho barbudo pensava apenas numa frase que ouvira a muito tempo: “onde tem criança o diabo não fica”. E se dirigia à cama para mais um sono tranquilo.


 

sábado, 20 de janeiro de 2024

Póstempo

 

Gods of the Modern Wolrd-The Epic of American Civilization, 
José Orozco, 1934


Um amigo pergunta o que penso do ChatGPT. 

Temos um novo oráculo na praça. Mas ainda prefiro o I Ching, é mais poético além de exigir considerável esforço de processamento neural. 

Alguém entra no papo e diz que é preciso saber perguntar, que uma pergunta bem formulada já contém em si a resposta, que é uma ferramenta maravilhosa e coisa e tal… 

Lembro daquele robozinho que busca a mãe no filme do Spielberg. 

Que a inteligência artificial é uma realidade, permite que nos tornemos artistas plásticos, músicos, que façamos projetos arquitetônicos, jogos de guerra… Os escambaus a quatro, além de muito trabalho escolar – o que alivia em muito a pressão sobre o professorado. 

O que sobrará do meu cérebro para ser estudado caso me doe para alguma faculdade de medicina? 

Meu temor é acordar máquina que range… 

Preocupa-me a escolha de qual óleo amaciar minhas juntas e conduítes venosos, diante de uma prateleira cheia de substâncias trans, gorduras altamente saturadas, ácidos graxos e outros inúmeros combustíveis para minhas células plásticas eternamente duráveis.

Não consigo explicar mas do nada inventei uma desculpa dramática e consegui escapulir completamente da conversa e fui jogar point and click na parede lá de casa.


 

 

sábado, 13 de janeiro de 2024

estado de alma

 

Small Island, Dieter Roth, 1968



quando os arranha céus

os guindastes

as naves espaciais e os vírus

me sitiaram

não vi saída senão encolher

e encolhi…


no estado quântico que habito

perseguido por leis surreais

e estranhezas corriqueiras…

enxergo vantagem

nessa troca de verso:

em sendo tudo líquido

é normal viver embriagado