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sábado, 8 de junho de 2024

cinco sentidos

 

Allegory of the five senses, Theodoor Rombouts, 1632



o perfume que vem da casa ao lado

o alarido juvenil a afastar demônios

os latidos dos cães na madrugada

o ruido das ondas a descansar na praia

o gotejar da chuva na telha de flandres

a ventania que assusta os coqueiros

e a lembrança daquele amor que partiu


a sala úmida cheira a passado

e o frango com verduras que fiz ontem

me faz pensar em dormir e sonhar

até que a tarde vista o manto noturno

e acalente no colo o bebê chorão

que deseja crescer e ir pra rua aprender

a alegria quente e fria do são joão


os olhares ameaçadores dos homens, eis!

e a indiferença de suas mulheres,

maquiadas adolescentes esquecidas

de suas velhas mães banguelas

que puxam conversa no coletivo

e despertam o fingimento covarde

das pretensões burguesas televisionadas


nas ignorâncias demasiadas

meu próximo é um concorrente

devo simular que posso (quero crer)

e apertar a campainha, descer no ponto

que, neste começo de noite, me cabe…

quem sabe sinta o perfume que a vizinha exala

e ouça a criançada a botar pra correr os demônios 


 

sábado, 27 de janeiro de 2024

O velho barbudo da casa de fundos

 

Google Imagens




Em geral, o sujeito adulto perde a curiosidade deixando no lugar o sentimento fofoqueiro de saber e se deliciar com os segredos e as desgraças dos outros. A criança não. A criança olha, vê e quer saber de tudo.

Na rua de cima, havia um portão amarelo, com uma sineta por campainha. As crianças que moravam por ali adoravam competir pra ver quem conseguiria tocar mais vezes aquele sino na vã tentativa de fazer com que o velho barbudo que morava no fim daquele corredor estreito e escuro viesse até o portão e dissesse alguma coisa, qualquer coisa: era o desejo secreto de cada um – ver e ouvir aquele estranho se manifestar, já que o comum é vê-lo subir com esforço a pequena ladeira, sem dizer palavra, até a casa que nenhuma daquelas crianças fazia a menor ideia como seria.

Seria um bruxo, um feiticeiro capaz de transformar cada um em sapo ou coisa pior, só pelo prazer de castigá-lo pela perturbação? Seria sua casa um buraco que ia dar no fim do mundo? Se sabia atiçar todos os cachorros na madrugada, fazendo-os latir mais que o habitual, seria ele um comedor de gente, um lobisomem, um vampiro, um diabo disfarçado de gente?

E todos acabavam indo dormir, obrigado ou não, com a pergunta martelando na mente: Quem era aquele velho silencioso e taciturno que vez por outra levava a paralisação da brincadeira para todos pudessem observar os passos exaustos que ele insistia em continuar praticando em direção à sua casa misteriosa.

Alguns adultos, por força de circunstâncias, visitaram a casa do velho barbudo, viram o que era pra ver mas não fizeram esforço para aliviar a imaginação das crianças, afinal não faziam ideia do que as perturbavam nem tampouco sabiam como satisfazer suas dúvidas e interrogações.

E elas, reunidas, no cair da noite, brincavam com intensa alegria. O velho barbudo ouviu um ou outro choro mas compreendia que era apenas um conflito com uma mãe que a queria na cama ou no banho.

E nestas horas em que até os cães se calavam, o velho barbudo pensava apenas numa frase que ouvira a muito tempo: “onde tem criança o diabo não fica”. E se dirigia à cama para mais um sono tranquilo.


 

sábado, 29 de fevereiro de 2020

fruto da imaginação


The imaginative faculty, Rene Magritte, 1948




minha mãe não me deixava morrer de fome
mas me matava de amor

passei o dia a martelar
esse paradoxo na cabeça…

pensei em descansar
confiei que se dormisse
encontraria uma resposta

e sonhei
sonhei que resolvia a contradição
que ainda vive em mim

porém, quando acordei
a primeira coisa que lembrei foi
os termos
ao se somarem
anulam-se mutuamente
restando no lugar
uma carência

se a realidade não passa
melhor ficar em paz
melhor fazer de si
um fruto
da própria imaginação