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sábado, 26 de março de 2022

A guerra que nos vive

 

War, Marc Chagall, 1915



Partiria. Atenderia ao chamado, decidiu.

Que o esperasse, com uma torta de frango sobre a mesa, pediu e jurou, diante dos olhos tristes da mulher, que retornaria assim que o conflito terminasse.

A ela (enquanto ajudava na arrumação da mochila) ocorreu que o caos não duraria para sempre…

Até riu, e contentou-se, tudo passa, fixou!


Mas o esperado demorou…

E o tempo, implacável, se sucedeu em opressiva inutilidade.

Então, as mãos cansaram, os seios murcharam… os dentes caíram até


Numa desavisada manhã, sem que nenhum estrídulo de sirene arranhasse o ar, a própria esperança se extinguiu e o relógio cessou a vigília.


O que era vivo faleceu e o que tinha perecido insistia em viver.


Enfardado de cicatrizes e remorsos, o maltrapilho homem cruzou o vão da porta morta.

Automática, a vista perscrutou a sala fúnebre e ao sentar-se à mesa defunta sentiu que o abandono era sua única companhia.

E ali, habituado ao vazio conquistado, compreendeu que morrera no instante em que partira.


Lá fora, a guerra zurrava. 



        

sábado, 23 de maio de 2020

crônica em seis movimentos

Explosion, George Grosz, 1917



I

primeiro venderam a alma

depois perderam a vergonha

deram uma banana pra verdade, ética, futuro

        os cambaus

enfiaram a mão no nosso bolso

distribuíram entre os mais ricos e

foram à televisão dizer que patrão sofre…


II

diário oficial da união, avisa:

abstenham de cometer desatinos

nem se atrevam a torcer contra

o mundo é pequeno demais para nós dois

nunca houve nem haverá bolo a ser repartido

trabalhe em vez de exigir direitos

kkkkkkkkk…


III

no pesadelo em que nos encontramos enfiados

bala perdida deixou de existir

os projéteis já vêm de fábrica com nome, sobrenome

classe social, cor da pele, filiação…

e se acaso o algoritmo falhar

e o endereçado, por mágica, sobreviver

o excludente de ilicitude chega junto

para que não reste dúvida,

de que a bala foi pacificamente programada

para apagar todos os indesejáveis pontos da curva


IV

o pau comendo

e o sujeito fazendo graça

o pau comendo

e o sujeito falando merda

o pau comendo

e o sujeito fazendo festa

o pau comendo

e o sujeito criando treta…


eita sujeitinho ruim

coisa pior que a peste


V

e quando a guerra civil fizer sua última vítima

o derradeiro demônio que sobrar

se sentará diante de um vídeo pornô

a se flagelará

heroico

por toda a eternidade, amém


VI

A divindade

numa mistura de gozo e piedade

diante do pavio

com seu habitual hálito flamejante

sussurrará lux

e a manhã

que ainda não foi escrita

nasce

sem a pretensão de ser título




sábado, 11 de abril de 2020

escuta só


Fausto, Eduardo Arroyo, 1975



dizem as boas línguas que
a continuarmos alimentando o capitalismo e seus filhotes
(a saber: o latifúndio, agronegócio, mineração destrutiva,
políticos integristas e seus aliados neo pentecostais
com sua “eficiente” teologia da prosperidade)
não…
não teremos salvação.

nessa pisada
é bom tirar o cavalinho da chuva
duvido deus algum que nos salve

eis que estamos sob a mercê de entidade
pior que aquele carrasco sádico do velho testamento
conhecido como jeová, lembra?

é que acendeu ao trono de todas as terras e céus
um subjugador de deidades
o supra-sumo-hiper-mega-blaster
senhor deus supremo divino Mercado

jesus, buda krishna, alá… tudo isto é passado
estas antigas entidades vacilaram
esqueceram do futuro
e agora
ou renderão obediência ao mestre
ou se lixem na escuridão sofrida do esquecimento

o mundo sob este novo jugo está condenado
não digo à extinção literal
mas do jeito que caminha
há de se transformar numa imensa zumbilândia
onde “ilhas de prosperidade”
(cada vez mais minúsculas)
habitadas por arquimultimilhiardários
dispõem de todos os recursos
enquanto à maioria absoluta da população sobra
para se digladiar nas esquinas
por um mínimo que lhes possibilite sobreviver
num mundo feio, fedido, barulhento
violento, dissoluto e suicida.

a distopia mais sinistra
(que nunca os cronistas antigos imaginaram)
acabou por reinventar o apocalipse… portanto,
esqueçam a ascensão
porque hoje vivemos uma imensa e tumultuada
descida compulsória aos infernos…

heinrich faust é o nome danado de tal demônio
mephisto é o seu mestre
gretchen somos nós