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sábado, 3 de maio de 2025

pensamentos de última hora

 

Não deve ser reproduzido, René Magritte, 1937


imaginar deus é a nossa fortuna eterna,

mas dar-lhe existência

torna miserável a nossa.


só existe sentido na incompletude

na carência, na ausência

na saudade do mundo…


sou tudo aquilo que me falta

ainda mais

aquilo que jamais alcançarei…


transitório,

quanto mais me encontro

mais me perco…

 

me escondo no reflexo

da minha própria natureza


 

sábado, 19 de abril de 2025

saga de um gozo

 

Caritas Romana, George Pencz, 1538



Noemi

mesmo sem tempo,

(tinha que chegar na hora no trabalho)

todo dia, esbaforida

dava uma geral na casa

pensando numa possível noitada

com aquele colega de departamento

aquele tal do peitoral sexy

e promessa gostosa

de um prazer para além de todo sexo…

mas o que ela não pensava

é que não adianta

deixar a casa um brinco

se o mundo continua lixo


Noemi

de quantos e tais detalhes

cansada, acenava ao coletivo

e lá ia, encoxada, bolinada,

indiferente a tudo (menos ao nojo

e ao colega de departamento

a lhe atazanar os sentidos…)


no dia que encontrou coragem

o convidou para um café

mas ele a empurrou contra o portão

suspirou “ahhhh…”, a sufocar seu silêncio

num gozo alheio e

com a calça encharcada de gala,

se mandou pela rua afora

sem nem ao menos perguntar:

foi bom pra ti?”


Noemi

ao devolver um dos seios para dentro da blusa

ergueu os olhos para o céu estrelado

ao tempo em que sentiu os pés

sobre o indiferente asfalto,

sussurrou para o vazio,

como se estivesse diante de um espelho estilhaçado:

quem, diabos, inventou o sexo?


 

sábado, 5 de abril de 2025

entre o agora e o nunca

 

Músico, Thiago Boecan, 2018



no blue desse tédio

abacaxi de caroço

rosna um carro dentado

a flutuar na rua de ninguém

(petróleo, fuligem

óleos, passos metálicos

e cobras elétricas enroscadas em postes…)

à margem, coqueiros

suspiram folhas

e frutos vadios

tal qual

uma sacola vazia

de supermercado

tangida

o olhar amarelo

do semáforo pisca vigilante

entre o agora e o nunca

uma moeda de sangue

é cuspida na face inútil

duma rosa de plástico

plantada sobre a geladeira

um espelho estala na sala

meu coração improvisado

exala arpejos

a tatear canções 

 


sábado, 29 de março de 2025

canção em meio ao caos

Colagem, Mister Blick, sem data


dizem por aí

em prosa e verso

após uma batalha de amor

o guerreiro vigorado

torna à guerra renomado

com redobrado ardor


eu, logo amáramos

desejo apenas dormir

no sonho fruir da poesia

(uma quadrinha que seja)

abraçar a eternidade

versejar em meio ao caos


dona, graça tal me cedes

por este amor, me enlaça

pois se me caça a guerra

apresso o verso opresso

faço da alegria bandeira 

da nossa cama trincheira


 

sábado, 8 de março de 2025

hoje

 

O que torna as casas de hoje tão diferentes, Richard Hamilton, 1992



hoje, ah hoje…

nem bem acordo o celular dispara

a promoção do dia, o desastre

a falcatrua, a mentira

o imbróglio político, o escândalo

o joguinho que interrompi ontem…

frequência cardíaca a mil,

glicose no teto, bolsa cai…

funerária boa viagem fez uma ligação perdida, ah!

antes que’u esquente ovos pro desjejum

a ia me avisa da teleconsulta

para implorar cardio que

avalie o risco cirúrgico

de uma inevitável remoção de catarata…

em meio a tal burocracia me assalta um pensamento:

pobre burro num corre insano

através de florestas em chamas, terremotos

tartarugas engasgadas com canudinhos de plástico

tô nem aí e améns

a fugir de tigres e tubarões famintos mas

ainda vivo e a ver o burro, zurro e açoito:

no dia derradeiro finda o poema,

a não ser que alguém decida repetir

ou dar continuidade ao verso


 

sábado, 1 de março de 2025

o colonialista

 

Colonização da América, Carlos Latuff, 2008


ontem entrei na vossa terra

fugido de outros fortes

que minhas ideias perseguiam…


e, agora, perseguido por vocês

galopo furtivo nesta terra

que ainda não é minha mas

pela graça da divina promessa

me foi destinado este chão

o chão que ocupais, para nele edificar

um reino digno da excelsa glória


porque me perseguem então, ímpios -

não ouviram o chamado que o deus fez a mim?


dele trago o dever de aniquilar todos vocês

mas por minha sapiência e benevolência

poupo os frágeis – mulheres, velhos e crianças,

os confino em terras fracas para que não prosperem

e não alimentem a vingança dos ancestrais


mas, vocês ainda me perseguem

não mais bravos guerreiros

mas fantasmas, assombrações

miríades de choros, lamentos, gritos

agonia que ecoa a calada dor

à custa das armas, doenças, drogas e dinheiro


 

sábado, 22 de fevereiro de 2025

era uma vez

 

Odalisque, Guillarme Seignac, 1900


a muito tempo atrás

(quando os pulmões do mundo

respiravam o ar estreito da juventude

e os meus colegas de colégio pareciam

teimosos pássaros a sobrevoarem um tempo

cheios de asas de alegria, entusiasmo -

tirando o pior que rugia lá fora -

esperanças, bonitezas e perspectivas)

eu acordava, corria pro banho,

sob luz fria da madrugada,

escovar os dentes, tomar banho

e voltar correndo

pra escolher a roupa cansada de todo dia,

tomar café com leite, pão e manteiga

crente no ônibus pontual

que me levaria para 9 horas de trabalho

de segunda a sexta-feira…

(às vezes aos sábados ou domingos

meu chefe nos convocava pro balanço

e lá íamos engaiolados, na kombi da firma,

contabilizar os detalhes e sobras

da velha fábrica de percaline…)


ó tempo que não passava!

pois nada sabia, apenas intuía

o anormal que me acostumara

às ordens imperiosas da mãe-pátria,

a quem eu devia amar ou deixar,

(obedecer era tudo!)

e lá ia com fome, com sono

esperar o carnaval chegar,

cumprir a regra geral…

e até casei, de papel passado,

com o lar doce lar

e fui dormir no cabaré

à procura daquele amor

que tatuou cicatrizes em minh’alma

e apertou minha mão no velho cinema

diante das imagens do príncipe valente…

mas quem era eu pra sustentar

aquela mulher da vida, zélia linda,

última flor do lácio,

a me arrastar à poesia,

a rebobinar memórias,

último refúgio que alimenta,

tal qual numa fita de Fellini,

o seio túrgido da paixão


 

sábado, 15 de fevereiro de 2025

ódio

 

Woman with Revolver, Alex Colville, 1987



o ódio tem nome, sobrenome,

selo, brasão e armas…

endereço gravado em mármore

altas portas de excêntricos adornos

cercas pontiagudas e elétricas

protetoras de cifras e sombras espertas.


frágil, humano, simples em essência,

o ódio é um corpo armado e nu

a erguer aos ventos ordinários altares

e engendrar deuses

no espelho estilhaçado do mundo

para negociar a extinção do próprio abismo.


o ódio leva as crianças à disney todo ano

frequenta culto aos domingos

faz dedutíveis doações

e sonega convicto

qualquer solidariedade

que não lhe renda fama e fortuna…

porém, em surto contínuo e calculado

propaga, desesperado

que seu direito de odiar é censurado

pelo jugo cruel da inveja opressora

negadora do mérito empreendedor

do trabalho que liberta


(eis um duelo narcísico ao pôr do sol:

o ódio exige reparo às próprias ofensas

infringidas pelo egoísmo na crença

da imagem e semelhança infalíveis…)


esquecido do abismo da dívida pública,

da sangrenta desigualdade que consome

a mínima justiça,

o ódio constrói muros,

atiça o fogo

sibila, voa

e normal ecoa

nos corriqueiros olhos

da vergonha e desgraça alheias.



 

sábado, 8 de fevereiro de 2025

colagem

 

A Loira da Guerra Fria, Robert G. Harris, 1959


sonho com a porta inexistente

as peças do quebra-cabeça não se encaixam…


o humorista bruno costali,

após andar com medo de voltarmos a 2018

passou a ter medo de regredimos a 1940,

nos brinda com a melhor definição de fascismo:

mistura de gente ruim com gente burra.


as rachaduras nas paredes denunciam

o vilipêndio que devasta o buraco da fechadura

tudo é ponto de vista,

tudo é tabu, nada é sagrado


trump assume transformar gaza numa dubai

que os palestinos desapropriados

procurem outro lugar pra sonhar…


a escolha me foi imposta numa mesa de pôquer…

(as inteligências artificiais estão sob restrição de uso)

talvez, no fim, o vazioesse enorme silêncio e ausência,

seja a única rota que me resta.



sábado, 1 de fevereiro de 2025

salmo 151 - o primeiro dia do fim

 

Bloody Spots, "Kukryniksy" (Coletivo de Cartunistas Russos), 1942



sou teu pior pesadelo
a ti odiar, a ti fazer sofrer…

vou conspurcar os teus, destruir teu abrigo
salgar teus campos, secar tuas fontes
te aniquilar para que teu sangue restaure
minha grandeza, minha potência
minha pátria, minha família,
minha liberdade
meu poder de acabar com tudo
70 vezes 7 vezes
voltar no tempo, fortalecido
pioneiro numa nova cruzada
nova corrida pelo ouro
sem regras que as do livro
meu fiel escudo

tudo pra mim, nada pra você -
sou teu pior pesadelo…

vou instaurar o caos,
inaugurar o apocalipse
trazer jesus de volta
ser arrebatado por anjos…
vou viver em marte,
integro, por todo o sempre
à direita do deus pai
todo poderoso
amém


 

sábado, 18 de janeiro de 2025

fogo impuro

Skull on Fire, Kristoffer Zetterstrand, 2010



um homem

(ator famoso)

chora copiosa e artisticamente

para deleite da audiência

de uma grande emissora televisiva:


sua casa, no condomínio Paliçadas do Pacífico,

foi destruída pelo fogo

implacável que consome

o lado rico da cidade dos anjos…


a repórter, com voz embargada,

lhe é solidária na ladainha purgatória

onde nega as mudanças climáticas…


e alheio às chamas

que lhe enxovalha as lágrimas,

brada ao exército israelense,

(em nome da redenção e grandeza

da terra dos livres e lar dos bravos)

que dê um fim, sem perdão,

aos palestinos na faixa de Gaza


 

sábado, 4 de janeiro de 2025

palhaço

 

Circo, Candido Portinari, 1942




o dia bebe

e escreve


poemas

a embriaguez

inventa


lúcido,

viver é insano

e pode

acabar amanhã


mas e daí

se disfarço

e faço de conta

que o desatino

é um gesto teatral


 

sábado, 28 de dezembro de 2024

trópicos

 

Tropical Forest, Henri Rousseau, 1908


o nosso bem-estar

anda no fio da navalha

 

é que debaixo deste sol

é impossível ser nórdico…


temo que um dia

crianças sejam impedidas

de brincarem nas calçadas…


nesse dia, os baldios

nauseados de lama, urina,

confete e serpentina,

se espraiarão nos jardins,

a pisotearem rosas azuis

e produzirão adubo

que farão crescer ipês-roxos,

amarelos… e vermelhos


 

sábado, 21 de dezembro de 2024

A Briga na Procissão

Cordel de Chico Pedrosa (Paraíba 1936...)

 

Quando Palmeira das Antas

pertencia ao Capitão

Justino Bento da Cruz

nunca faltou diversão:

vaquejada, cantoria,

procissão e romaria

sexta-feira da paixão.

 

Na quinta-feira maior,

Dona Maria das Dores

no salão paroquial

reunia os moradores

e depois de uma preleção

ao lado do Capitão

escalava a seleção

de atrizes e atores

 

O papel de cada um

o Capitão escolhia

a roupa e a maquilagem

eram com Dona Maria

e o resto era discutido,

aprovado e resolvido

na sala da sacristia.

 

Todo ano era um Jesus,

um Caifás e um Pilatos

só não mudavam a cruz,

o verdugo e os maus-tratos,

o Cristo daquele ano

foi o Quincas Beija-Flor,

Caifás foi o Cipriano,

e Pilatos foi Nicanor.

 

Duas cordas paralelas

separavam a multidão

pra que pudesse entre elas

caminhar a procissão.

 

Cristo conduzindo a cruz

foi não foi advertia

o centurião perverso

que com força lhe batia

era pra bater maneiro

mas ele não entendia

devido um grande pifão

que bebeu naquele dia

do vinho que o capelão

guardava na sacristia.

 

Cristo dizia: “Oh, rapaz,

vê se bate devagar

já tô todo encalombado,

assim não vou aguentar

tá com a gota pra doer,

ou tu pára de bater

ou a gente vai brigar.

Eu jogo já esta cruz fora

tô ficando revoltado

vou morrer antes da hora

de ficar crucificado”.

 

O pior é que o malvado

fingia que não ouvia

além de bater com força

ainda se divertia,

espiava pra Jesus

fazia pouco e dizia:

 

“Que Cristo frouxo é você,

que chora na procissão

Jesus pelo que se sabe

não era mole assim não.

Eu tô batendo com pena,

tu vai ver o que é bom

é na subida da ladeira

da venda de Fenelon

que o couro vai ser dobrado

até chegar no mercado

a cuíca muda o tom”. 

 

Naquele momento ouviu-se

um grito na multidão

era Quincas que com raiva

sacudiu a cruz no chão

e partiu feito um maluco

pra cima de Bastião.

 

Se travaram no tabefe,

pontapé e cabeçada

Madalena levou queda,

Pilatos levou pancada

deram um bofete em Caifás

que até hoje não faz

nem sente gosto de nada.

 

Desmancharam a procissão,

o cacete foi pesado

São Tomé levou um tranco

que ficou desacordado,

acertaram um cocorote

na careca de Timóteo

que até hoje é aluado.

 

Até mesmo São José,

que não é de confusão

na ânsia de defender

o filho de criação

aproveitou a garapa

pra dar um monte de tapa

na cara do bom ladrão.

 

A briga só terminou

quando o Doutor Delegado,

interveio e separou

cada Santo pra seu lado.

 

Desde que o mundo se fez,

foi essa a primeira vez

que Cristo foi pro xadrez,

mas não foi crucificado.