sábado, 21 de agosto de 2021

ode ao nordeste

 

A bandeira da onça, Ariano Suassuna, Pedra do Reino, 1970


ah, minha alma mais antiga

meu nordeste encantado

sertão, caatinga

relampejar de delírios

oitava acima do normal

voz a desafiar lonjuras

desgraças e saudade...


ah, galega, moira minha, tudo no nada

meu engenho, meu mel

minha cachaça, pão cozido em miragens

nordeste recheado de reinos,

dragões, pavões misteriosos, visagens

príncipes e princesas,

bandoleiros heroicos, amores fatídicos

vinganças homéricas, dores abissais

matutos astutos quais semideuses

e madrastas cruéis que nos roubam os pais

em luares habitados de presságios e rapinas


ah, meu nordeste de infinitos tempos

cruzados na ciranda melancólica das horas

que a fantasia se nos cumpra e salve

da secura do clima e dos hereditários coronéis

meu nordeste dos bumbas e pastoris

maracatus, cavalhadas...

folguedos doces, tão doces quanto as cocadas

os quebra-queixos, rapaduras e queijadas

que as mestras (sacerdotisas pagãs

avalistas do mistério cristão)

entregam aos corpos e às almas

em terreiros e quintais, a hóstia comezinha

o espanta-medo das mulheres-meninas

que choram solidões dos seus meninos-homens:

galalaus em longínquas partidas

prisioneiros de promessas


ah, meu nordeste

apesar de tudo, no lugar de lágrimas

forjaste um sorriso estridente

eita gargalhada estrondosa

gaitada sonora, fórmula mágica

capaz de silenciar o Olimpo

e perpetuar um modo de vencer o medo,

de preservar a vontade

de tornar o mar um dia

habitante sempiterno do sertão.



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