sábado, 6 de abril de 2019

O fela de bem



Death of the Capitalist, Diego Rivera, 1928


A pergunta do repórter é sobre medo. “Temo ladrões. Não será com rezas e velas que nos livraremos deles. Ladrões não respeitam um dos pilares da nossa sociedade, a propriedade privada. Você pode até falar que é diatribe falar contra a miséria da cobiça. Mas pensa, se todos que me invejam trabalhassem, esse seria o melhor país do mundo”.
Qual a saída?… Trago a solução definitiva: a efetivação de uma milícia que atue nas falhas da justiça, que limpe a cidade, que devolva ao homem de bem o controle da vida”.
Por que todo fela adora cair em reminiscências, pensa o fotografo: “Que saudade da pracinha, do parque de diversão, das cadeiras na calçada, do footing das meninas, da fonte luminosa... Ai, que saudade do tempo em que era possível todas as inocências…”
Tomado de melancolia, deixa-se levar pela emoção e suspira pela perda de algo que ainda não perdeu, uma antecipação da saudade pelo eventual sumiço de um móvel ou utensílio da sua casa num condomínio de luxo classe média, comprado com o suor do seu rosto, como gosta de frisar. E pondera, com o olhar petrificado nas coisas, enquanto reúne material para novos argumentos, o quanto teve que ralar, fazer das tripas coração para se motivar a ser melhor que suas próprias expectativas.
Um fela do bem. Um cuidador da família, que não deve nada a ninguém. Um autossuficiente. Isso é o que ele é. Com suas mãos ferramentas; seus olhos esquadro; seu instinto formão…Um triângulo decididamente circular. “Fui educador para dar valor ao trabalho”.
Sabedor de que haverá discordâncias, responde prontamente: “Por que daria mole para vagabundo? Ladrão é ladrão, não importa o que roubou, para que roubou, porque roubou... tem que pagar com juros e correção monetária. Todo aquele que, movido pela inveja, fira a propriedade privada, não pode se queixar das porradas e, eventualmente, do esquadrão da morte.
E continua como se o jornalista insistisse: “A lei existe para ser respeitada. A lei existe para que os felas do bem continuem repousando suas cabeças cansadas em travesseiros macios. É a vida. Assim é que tem que ser. E tem mais: associados a ladrões, sobrevive a nobre raça dos políticos, esta outra categoria de parasitas que destrói a energia produtiva de qualquer nação. Na guerra contra todos esses escroques não haverá trégua”.
O leitor quer saber como juntou seu primeiro milhão, interrompe o entrevistador. “Simples… a partir de dribles, fintas... porque a vida é que nem partida de futebol: só se deve tomar cuidado com a linha do impedimento. No resto tudo é possível. Até fingir… No entanto, roubar jamais… Digo que é preciso cuidar da segurança antes que a barbárie nos apanhe. A vigilância é o preço da liberdade sob pena da vacca vadit ad paludem…” E ri, da própria piada, como se tivesse contado uma piada.
Ali mesmo assevera que está com tudo pronto para apresentar ao mundo a primeira milícia legal, com todos os direito e encargos de uma empresa privada que se digne do nome. Não nascera para entrar com a carne enquanto outros aparecem apenas com o espeto. Falta apenas alguns ajustes para que a fortaleza possa ser usada como quartel-general do seu exército particular. “É o bom e velho dinheiro dando emprego a quem merece, porque existe muita gente que ainda quer trabalhar e mais, porque esta é a indústria que mais cresce em nosso país”.
Para comemorar a empreitada, toma dois ou três goles champanhe, dá muitos tapinhas das costas e saracoteia entre quase um milhar de convidados. Antes de sair, tem tempo para mostrar alguns dos mais sofisticados equipamentos no combate ao crime e apresentar alguns dos principais membros da sua equipe de inteligência com agentes infiltrados nos quatro cantos da cidade.
Acontece que é da natureza humana, em culturas que endeusam a posse, desejar o que se vê pela frente, ainda mais se do objeto de desejo recomenda-se distância, estando tão próximo. Mas também sabemos que é preciso ser forte, nunca deixar-se cair em tentação.
O ser humano é frágil e falho. Planeja, planeja e anda sempre a esquecer de muita coisa. E sendo o sistema uma criação humana, uma hora o negócio começa a falhar… Quando se pensa que não, a guarda já foi baixada deixando à mostra inúmeras fissuras, brechas no processo, lacunas na lógica… Às vezes se presume segura uma coisa, uma fortuna, por exemplo – toda ela empenhada em papéis, obras de arte, pedras e metais preciosos, bem guardados em cofres fortes, longe do alcance de mãos e olhos. Porém, em tempos da alta rotatividade das finanças globais, tal qual uma teenager fissurada (cujo pai se sabe belamente impune) a fortuna é volúvel, volátil e descuidada… Acaba sempre, justamente, naquela margem do rio onde a onça costuma beber água. E quando a serpente sente o cheiro da tenra presa, não existe cartório que impeça os concorrentes de passarem a língua pelos dentes.
Trancado, tranca-se ainda mais e não tarda a alimentar a voraz ideia de que virá em boa hora um apocalipse. É o que deixa transparecer quando outras milicias começam a lhe bater na porta. Começa a apostar suas fichas no tipo de desdobramento histórico cataclismático ao ligar-se àqueles que divulgam, às vezes de muita boa vontade, os indícios do fim do mundo. Não poupa recursos na conclamação a que todos se arrependam dos mal feitos e entreguem suas almas na congregação mais próxima.
Ao decidir, segundo o noticiário televisivo das dez, viver recluso, aprisionado no quarto do pânico (metro e meio de titânio reforçado) é mais que suficiente para que a sua própria milícia (agora transformada numa mercadoria altamente rentável e conseguir a adesão da mídia sequiosa de verdades do tipo daquelas que não atrapalham os negócios e, principalmente, baseada em documentos, milimetricamente forjados, a base de pressão bem aplicada em pontos fracos de pessoas chaves) tome conta do império.
A Lei de Talião transforma-se no novo ordenamento jurídico. Ultrapassa-se o limite do privado legando ao público, ávido por desforras, algumas casquinhas. Também foi jogo rápido. Logo após uma guerra de milícia patrocinada por grandes petroleiras, em nome da moral e dos bons costumes, toda aquela esbórnia acaba indo para o brejo. E a merda se faz carne. Ao fim, sobrados poucos braços no outrora próspero exercito de reserva é urgente tocar o negócio. Eis que as velhas ideias, após uma toalete completa, transformam-se em novidade. É quando outro fela do bem surgem com a brilhante solução: apelar para os ladrões de galinha, os pés de chinelo… mas, infelizmente é tarde demais… Ladrão de galinha não mais há. Sobrara apenas celebridades.  


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