sábado, 9 de fevereiro de 2019

o moribundo


Fairthful Undo Death, Edward Poynter, 1865



o moribundo
crônico
às vezes
em sua enfermidade
é surpreendido por um instante de saúde...

ergue-se então
qual um monumento orgulhoso da própria ignorância
a exibir valentia
totalmente por fora dos propósitos da natureza...

nessas horas
o moribundo
considera sua cura
aparente
uma obra de deus
(providência vingativa)
e proclama
(do olho do furação)
viver no melhor dos mundos

mas é momentâneo seu conforto
para o moribundo a tempestade não cessa: avança
e mistura e dissolve
tudo
menos os grilhões que o acorrentam
à matéria cruel dos seus delírios…

(eis o mané-gostoso
nas mãos da implacável alternância dos fatos)

digo: mesmo que o moribundo prossiga
só fará acentuar sua palidez
(por demais acentuada)
e a embaraçosa incerteza de que o sangue
possa ainda (em vão) lhe correr nas veias...

mas o moribundo não morre
(por mais que o reneguemos)
e qual um fantasma da sua divindade rancorosa
incapaz de livrar-se dos erros antepassados
volta a existência
com a missão de incriminar e condenar
a vida

pintemos e cantemos irmãos, não desistamos:
eis uma figura inapelavelmente grotesca
aquela mão velhaca
a nos conclamar piedade
mas que nos quer arrastar ao rio da desmemória
não para a transmutação
mas para a perpetuação
da ignomínia que fez e faz sua mais sólida reputação
incapaz que é de morrer
numa batucada de bambas



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