sexta-feira, 4 de janeiro de 2019

instante zero


Container Zero, Jean-Pierre Raynaud, 1988


o bardo imortal
que não tinha papas na língua
cravou
existem mais coisas
entre o céu e a terra
do que possa supor qualquer filosofia

o redator do eclesiastes
por seu turno
lança sobre nossas cabeças
o vazio da vaidade
e fala assim apenas pra reforçar seu ponto:
contra o destino não existe rebuliço que dê jeito
é preciso confiar na verdade divina
escrita em linhas
tantas vezes
tortas

a jovem inquieta ciência
vive a criar modelos lógicos
lindos
abrangentes
que satisfaçam nossa curiosa necessidade
de entender a lacuna
mas sempre nos deixa à espera
de que a linha que demarca a impossibilidade do pensar
seja avançada
e permita o surgimento de novos e elegantes modelos
que nos lance adiante
do instante
que bem pode terminar 
antes 
de começar

e a arte, ah a doce e problemática arte
a que mais enxerga
mas pouco ou nada vê
a não ser sua irrestrita liberdade
de penetrar mais fundo
no labirinto
das nossas dúvidas abissais
e encarar essa condição trágica
com um sorriso de compaixão

e já que nada é definitivo
a religião
essa esperta
que bem sabe que nesse buraco
cabe qualquer resposta
tantas quantas forem humanamente
impossíveis
não deixa barato
e se esmera em lançar sob outras capas
a mesma estapafúrdia doutrina
a fé
de que o delírio é o melhor conselheiro

fico a separar alhos de bugalhos
e molho os pés o menos possível nas águas da presunção
prefiro meu instante zero
e amigavelmente
procuro jamais fazer aos outros
aquilo que não desejo nem quero para mim



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