sábado, 18 de agosto de 2018

Comer e pensar é só sentar


Sailor at Breakfast, Diego Rivera, 1914


Circunstâncias me obrigam a almoçar em boteco. Todo santo dia, lá me vou em busca de um bom comercial, numa das inúmeras bodegas que pululam na minha rua, mesmo sabendo que terei que engolir um acompanhamento bastante desagradável: a televisão ligada - em geral, naquele canal que não gosto de pronunciar o nome. Hoje não foi diferente. Quer dizer, foi. Fui tomado por estranha, irresistível e inexplicável necessidade de me sentar diante de uma tela de plasma.
À primeira garfada, me chamou atenção um quadro no qual uma especialista em mercado de trabalho (ou mais precisamente, em desemprego) respondia perguntas de pessoas devidamente selecionadas justamente por se encontrarem (a bastante tempo) na incômoda situação de ter que procurar sarna pra se coçar, ups… trabalho.
E, a cada um, a profissional convidada dedicou assertivas que me fizeram crer que o problema do desemprego é de responsabilidade única e exclusivamente do indivíduo desempregado. Foram conselhos do tipo “aceite redução de salário”; “conte com a tua rede de amigos”; “elabore um currículo atraente, detalhe cada experiência”; “considere contratar um coaching”… que não deixaram dúvida quanto a ausência de responsabilidade dos governos e dos empresários. Deste modo, na sua abalizada opinião (e certamente na da apresentadora e da emissora que a emprega), só fica desempregado quem quer. E esta foi a mensagem do programa que foi encerrado ao som de um vetusto cantor de iê-iê-iê romântico, renascido das cinzas para abrilhantar aquele final de manhã assombrosamente friorenta com queda sistemática de energia (a conta não falha nunca!).
Junto aos meus botões, que insistem em pensar na nossa elite maligna e mesquinha, me vem à mente aquele personagem classe-média que beija o chicote que o açoita por preguiça, ignorância, medo, masoquismo ou (mais provável) pura má-fé. Quase engasgo com um bocado de purê com um pouco de um suposto molho de camarão.
E ao abocanhar o último pedaço do filé de peixe empanado, lembrei de uma matéria recente num informativo online na qual o articulista, numa constatação apocalíptica, menciona que os dois grandes agentes responsáveis pela educação popular no Brasil, são as igrejas evangélicas e a televisão. E dado o estrago já causado, qualquer esforço para reverter este quadro resultará inútil.
Paguei a conta e saí com o compromisso de revirar os programas de todos candidatos a alguma coisa nas próximas eleições só pra sentir o que os nossos futuros representantes têm a dizer sobre o assunto. Não que a opinião deles vá mudar alguma coisa. Não vai. Cogitei, num gesto de desespero, procurar então candidatos que defendesse a seguinte plataforma: se tudo é iniciativa individual, se não existe resposta coletiva às nossas mazelas, entreguemos de vez o governo das coisas à alguma empresa privada e vamos todos em busca de especialistas que possam dar um upgrade nas nossas vidas.
No caminho de volta pra casa, percebi o quanto sou tardo. Isto já acontece bem diante dos nossos olhos e barbas. As grandes empresas, religiosas ou não, já trazem tudo dominado. E, de acordo com o melhor modelo de gestão, importado diretamente dos grandes centros de decisão, o voto deve ser facultativo e a única censura deve ser a do controle remoto. Afinal, toda boa empresa que se preze, oferece exatamente o que o mercado consumidor necessita: um governo qualificado, governo dos melhores, governo de notáveis, absolutamente vacinado contra a corrupção, a mentira e a falsidade.
A requalificadora no programa matinal que o diga.



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