sábado, 30 de junho de 2018

eu escolho, tu escolhes (segunda versão)



The Choise, Romain de Tirtoff, sem data



gosto de café
mas não recomendo pra ninguém
gosto de cerveja
carne de porco
tempo frio
sexo…
gosto também
de cutucar onça com vara curta…
gosto de uma porrada de coisas
mas não saio por aí
a recomendar o que quer que seja
pra seu ninguém
pra isso tem a família
as igrejas
os partidos
o governo
o chefe
e a droga do chefe do chefe
o advogado do chefe
o departamento de marketing
a pesquisa de opinião
os dados armazenados nas redes sociais
o congresso
a suprema corte…
além das fontes morais -
estas invisíveis e intocáveis -
que me fazem crer no livre-arbítrio
contanto tenha eu a dignidade
o discernimento
e a visão de futuro
para escolher
dentre os modelos apresentados
o meu estimado carro de luxo



sábado, 23 de junho de 2018

eu escolho, tu escolhes...



The Choice, Romain de Tirtoff, sem data



gosto de café
mas não recomendo pra ninguém

gosto de cerveja
carne de porco
frio
sexo…

gosto de cutucar a onça com vara curta...

gosto de uma porrada de coisas
mas não saio por aí
recomendando o que quer que seja
pra seu ninguém

pra isso tem a família
a propaganda
a publicidade
as igrejas
os partidos
o governo
o chefe
e a droga do chefe do chefe
o advogado do chefe
o departamento de marketing
a pesquisa de opinião
os dados armazenados nos servidores nas redes sociais
o congresso
a suprema corte
e o mané que acha que pode escolher
               entre o vício e a virtude...



sábado, 16 de junho de 2018

O habitus da alma


Objectos en la Pared, Angel Planells, s/data



ficaram:
o corpo
alguns objetos
roupas
fotos…
:coisas que o tempo dissolve

ficou também a impermanência,
este curto trânsito
a alimentar a lembrança
com o doce aroma da saudade
e a vaga impressão
de que o “nunca mais
ainda não atingiu o fundo

(sempre olho para a porta
como se aguardasse… -
que doido…!)

… por isto quando lembrares
não chore
nem deixe que a tristeza
turve seu coração
diga bem alto
o nome ausente
componha um poema
cante
dance
ria...
pois
saboreia saudade
aquele que traz o amor
temperado na alma



sábado, 9 de junho de 2018

o segredo do corpo


Inclemencies of the Body
Carlos F. Chicote, 2014



às vezes o corpo se desespera
é uma dor que não se explica
uma carência que cresce
uma ausência que chora
um anseio latente
um desacerto constante
um vazio que impera… e
a sempre inesperada morte

às vezes
(tudo que) o corpo deseja
(é) um simples e oportuno toque…



sábado, 2 de junho de 2018

O susto do conhecer



La Musa Metafisica, Carlos Carra, 1917


No meu tempo de menino,
Conheci uma garota que vivia isolada
Diziam dela, os colegas
Que morava numa casa
Malassombrada.
Duvidei. Virei chegado
Amigo de braço dado…

Um dia pedi pra dormir por lá.
Quem disse que ela estranhou?
Não senhor, falou que tudo bem
Que andava mal de aritmética
Que se eu era bom em matemática
Devia ajudá-la com a difícil tabuada.

A mãe dela concordou
E ajeitou um colchão no meio da sala
Botou lençol branco e cheiroso
Travesseiro macio e gostoso
E ao me dar um cheiro de boa noite
Sussurrou no meu ouvido: bem vindo...

Encafifado, de madrugada, num sobressalto
Empapado de suor, de repente acordei
Senti, enroscada no dedão do meu pé
Uma coisa gosmenta, gelada e macia
Pensei cá comigo sem saber donde vinha
Aquele pensamento que me dizia: é um jacaré

E num lance brusco, a imaginar um terrível dragão,
Puxei minha perna no instante mesmo que levantava
Mas aí senti que aparava um trem quente no meu pulso
E tremendo, convulso, ouvi o chiado de fritura
E no meio de tanta paúra cogitei de me borrar
Mas, segurei o pleito, optei por me exilar
Daquele sítio medonho
Sem saber se era real ou sonho
O que me levava a gritar

Mas não saía nenhum som, nenhum gemido
E em meio ao sufoco, bateu a sensação de perdido
Foi aí que me lembrei de um velho e bom conselho:
Em se tratando de coisa do outro mundo
Não há erro mais rotundo que ficar parado, sem ar
Para obter sossego, não se deve ser pelego na hora de respirar

Foi quando olhei de banda e vi aberta a janela
Certeiro, de um salto, dei um mergulho
Que até hoje tenho orgulho
De ter escapado daquela senhora mazela

Dez quadras longe de lá e sem muito bafafá
Notei que me ardia a ferida em forma de quadrado
E o que me deixou mais melindrado
Era que a pele derretia, como se, escondido
Um corrosivo beijo, me houvesse premiado

No dia seguinte, na entrada da escola
Minha amiga, pasma, veio me perguntar
– Que aconteceu contigo ontem à noite
Por acaso viste um fantasma?

Contei-lhe o ocorrido sem omissão
Ela riu de mim com doçura na expressão
Disse que eu tinha me assustado
Com um daqueles aparelhos de matar mosquito
E que o coitado tava lá agora, todo rebentado
Tudo por causa do meu faniquito

Verdade ou mentira
Compreendi que naquela casa
Tudo era brasa, ardido que nem pimenta
É que lá, os seus segredos
Só acontece de conhecer
Quem deveras a frequenta
E olhe que tem mistério
Naquele casa afastada
Mas nada que se compare
Aos olhos da minha amada