sábado, 2 de setembro de 2017

delírio matinal 10º dia

Narciso, Caravaggio, 1599





aquele desejo impossível
que insiste em me ocupar
aquele pensamento infantil
aquela esperança de que a mágica
possa acontecer
e sem qualquer esforço
consiga eu alterar o rumo do poema
é o que me mantém distanciado e
a salvo do mundo

porque o possível
é passível de muitos e inúteis sacrifícios
só o verdadeiramente forte
arrisca ousar
diante do perigo
diuturno
apenas para rir
durante um magro instante
antes que lhe repreenda
as regras do jogo incessante

porque é preciso ultrapassar
a mão invisível que tolhe
a voz
porque é preciso afinar o canto
e entoar a canção
que orienta
a corrida de obstáculos
- trajeto previsível -
que justifica a massa de invisíveis
desassociados
que lotam as estações
todo dia
nessa hora

qualquer um ostenta a minha cara
e permanecemos uns nos outros
como duplicados decalques
temerosos que a mais leve brisa
nos desfigure
nos falsifique
nos deturpe
nos adultere
nos desnature
e não tenhamos tempo
para aprimorar a técnica de depilação definitiva
e tracemos tatuagens
- símbolos inequívocos -
em nossos dorsos
que nos repugne
de toda e qualquer maldade

mas aí penso ser tarde demais
todos os deuses já partiram
restou apenas eu
e essa vontade inadequada


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