sábado, 14 de janeiro de 2017

Poema em Quatro Movimentos


Complex Simple, Wassily Kandinsky, 1939



Eu era poeta e não sabia
Pois o dom a mim não pertencia
Antes veio de ti, desde a origem
Toda alegria da sublime poesia



I
Uma fantasia já não me veste mais:
Olhos inócuos, costurados de serpentes
Acostumada a ansiosos passos
No chão caviloso da minha aldeia.
Já não vocifero mais, nem ergo os punhos
Em declinações de revolta, eis-me aqui:
Sobrevivente, a ostentar sobre o peito
Calcinadas pragas e pretensões vadias.
Tantos rastros de desprezados ritos,
Na névoa circundante desses sonhos,
Transita a ilha desculpada de arruinados portos
Golpeada por alísios e terrais de prantos.
Na trama de tais mapas, geografias passeadas de desejos,
Aguardam precipícios de agonia – eis o sentido oculto do anticlímax
(Singularidade exaltada na equívoco mítico das horas) -
Espaços cardeais a sustentarem laços de convulsas melodias.
Qual a graça desse encanto, ó idioma das soluções tardias?
Sabores não mais salivam, órbitas não mais saltitam
Apenas ausência e manuscritos contristados,
Desdém incessante que me segue – se é que sigo.
Outrora desejei um começo e hoje que o fim é óbvio
Saboreio desse exagero, tão culpado, tão omisso, tão pequeno
E ainda me divirto em meios as lixeiras travestidas de altares
Onde inocentes são expostos ao ignaro assombro das calçadas.


II
Um velho globo, um berimbau, um trenzim de ferro, um carrossel…
Enfeitai o fundo da lagoa, meus caquinhos – mal entendidos, adeus.
Meu quinhão de prejuízo, dívida ancestral, quitei
E agora que fali, tudo que devo
É de minha exclusiva irresponsabilidade.
Em Ouro Preto dei adeus a tantas coisas:
Cine Excelsior, Gláuber Rocha, Jequié…
O transe do sol na terra, o drama…
Aleijadinho, Circo Mequetrefe, adeus,
Mara Sandra, Geralda, aquela banda,
Vera e Suely, adeus, bye bye… E se devaneio tem desfecho,
Seja a viagem só de ida e durante apenas uma vida,
Deriva de quem navega buscar a palavra adeus.


III
Onde estão teus olhos verdes
Marujos, perplexos, atônitos
Olhos verdes poéticos
Sombras do que fui
Rastros do que serei
Mergulho através deles
E encontro outros tantos
Castanhos, negros, céus…
Se tantos são esses teus olhos
Serão tantos meus também?


IV
Uma vida simples, sem luxo, uma casa no campo, modesta
É tudo quanto quero, pois enxergo beleza na natureza
Banhar o meu corpo no orvalho, inundar minha alma de ar puro
É tudo quanto quero, pois encontro beleza na natureza
Fugir do cinismo corrupto da urbe, livre dos dogmas safados da fé
É tudo quanto quero, pois descubro beleza na natureza
Nada de excesso, desperdício, desordem, mau gosto, quimera
É tudo quanto quero, pois revelo beleza na natureza
Que musa racional inspire o gozo de mantra diário
É tudo quanto quero, pois engendro beleza na natureza
Digno de espírito, alcançar o encanto que me seja possível e sincero
É tudo quanto quero, pois invento beleza na natureza.






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