sábado, 12 de setembro de 2015

Seu Alfredo

Barber Shop, Robert Cottingham, 1989


Quando o Fonseca me contou que a podóloga que cuida da unha encravada dele, tal qual barbeiro, é pessoa insuportável pensei logo no seu Alfredo – que deus o tenha.

Não que fosse de todo desagradável, o velho. Tinha lá sua manjada conversa miolo de pote, adorava levantar lebres, ver se havia coelho em nosso mato , cheio de dedos e inquirições. Bom, até aí tudo bem, dá pra tolerar. Fazer hora extra na vida alheia é esporte global e não serei eu a desmanchar prazeres. Por este pequeno vício, com certeza está salvo. O problema é que invariavelmente invadia minhas inocentes narinas com uma daquelas afiadas tesouras de ponta fina. Aí, passava dos limites.

Cobrava baratinho (um terço do que os outros profissionais do bairro cobravam) e por isso, de quatro em quatro meses me achegava ao seu cubículo tomado por calafrios. No que tentei uma artimanha.

Para fugir da longa e severa tosa dos pelinhos nasais, passei a implorar: passa a máquina, seu Alfredo. Resmungava sereno inconformismo ao avisar que eu bem faria se aceitasse um daqueles cortes austeros e pomposos que estava acostumado a praticar.

Consta-me que em conversa, seja com o barbeiro, manicure ou taxista, não existe equidade. Neste tipo de conversa predomina caminho de mão única, onde nosso papel é o de assentir incondicionalmente, visto não fazer bem para a saúde contrariar aquele que, no manejo de um instrumento, pode nos causar prejuízo imediato.

Mas eu gosto de nadar contra a corrente. Insistir na máquina era meu modo de dizer que queria acabar logo com aquilo, que não precisa se esmerar. 

Somente a perspectiva do incomodo me fazia desbastar a juba, ficar com aquele quase nada de cabelo, o suficiente para alisar nos momentos de indecisão e encabulamento. 

Entendia-me, o barbeiro? Nada. Seu Alfredo tinha verdadeira obsessão por pequenos e inofensivos pelos e na arte de podá-los residia sua desagradabilidade. Na cabeça, cinco passadas da máquina, ligeirinho derrubava a mata. Após anavalhar os limites do corte, no que gastava parcos minutos, passava o resto interminável do tempo a eliminar os pelinhos do meu nariz, das minhas orelhas e das minhas assustadiças sobrancelhas. Imaginem aquela ponta de tesoura tic-tic, tic-tic, enquanto eu louco de vontade de espirrar, coçar e gritar meu desespero diante da dedicação e impassividade do velho artesão.

Por que me submetia? Já disse, por razões econômicas. Depois, queria ver se algum dia ele aventuraria mudar o rumo das coisas. Mas seu Alfredo não estava nem aí pro que eu sentia ou deixava de sentir. Todo dia para ele era igual a qualquer outro. Fazia o trabalho dele e pronto. E, convenhamos, tinha lá seu plus. Que mais eu queria? Ficasse quietinho durante aquele suplício em conta com direito a Aqua Velva nas vias respiratórias ao final.

Um dia, me contaram que alcançara o fim. Ri, liberto. Mas cabelo cresce e logo me vi enredado com uma jovem macia de mãos sedutoras, no salão de beleza na rua de cima. Cobra o triplo do falecido e fala pelos cotovelos, a danada, enquanto lava meu couro cabeludo com shampoo perfumado. Na última vez que a visitei, joguei verde: apararia os pelinhos do nariz? Foi enfática: devia encomendar barba (e morrer em mais um salgado tanto). Senti saudade do velho Alfredo.  


Um comentário:

  1. Ri largado e me emocionei com saudades do "Seu Alfredo" (meu pai).
    Você descreveu em detalhes características peculiares e me fez lembrar de tantas outras histórias que ele costumava contar, tiradas do dia a dia com seus clientes.

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