sábado, 28 de fevereiro de 2015

Uma Crônica entre a Vida e Morte


Portrait, John Brack, 1955


Acorda. Novamente não: outra vez… Vamos, levante, a bexiga implora alívio… Só mais um minuto, só até daqui a pouco, vamos… Na cama todo o dia se pudesse. Mais um pouquinho… Quinze minutos é só. Igual a ontem, a anteontem… Essa ausência que não é de hoje. Vai passar. Não. Melhor levantar.

O remédio, a caneca, o café e a poltrona… Controle remoto não funciona… Liga, desliga. Agora funciona? Vejamos: um sãofrancisco, dois sãofrancisco, três sãofrancisco… Ligou. Que tem? Zap, zap, zap… Quanto tempo aguentaria diante da televisão? Os olhos ardem, coçam, doem… Procurar um oculista logo. Logo agora que perdeu o plano saúde. Acordar cedo, enfrentar fila… Mais uma pra deixar pra outro dia.

E esta hemorroida. Quantas diarreias teve este mês? A partir de hoje só arroz e feijão… E peixe grelhado. Fim dos cremes, tortas, molhos e, principalmente salgadinhos – esse monte de porqueira. É um porqueira… Merda.

É hora. Onde a revista? O artigo: Fizeram reunião mediúnica em busca de contato com uma poetisa morta. E o espírito baixou. A poetisa suicida deu conselhos aos fãs. Caceta: como é que alguém que comete suicídio pode dar conselhos a alguém? Parece-me obvio que o método criativo falhou.

É o que acontece quando a gente começa a se imaginar atropelado por um ônibus, empastelado nos trilhos do metrô ou após cuspir na cara de um polícia, enquadrar um fascista… Seriam somente mortes fodidas, sem glamour… Já pensei em morrer de comer, de beber (uma vez imaginei cometer suicídio tomando água do Pinheiros de canudinho)… O fato é que tenho falhado desde então.

Uma ocasião tentei convencer algumas pessoas de que valeria a pena morrer por uma ideia. Mas ouvi que os tempos mudaram e que o negócio é continuar vivo para fazer as coisas aos poucos e que morrer de velhice é a maior glória nos dias atuais. Anote: “Deve haver alguma sabedoria nisso”.

Convém tornar isso um mantra. Mas ah, se não acordo. Ótimo esquecer. Seria um tipo de vingança. Porque se continuar vivo por muito tempo corro o risco de me desacreditar por completo.

O fato de saber que vou morrer dói, dói pra cacete… Os nervos falham, as pernas tremem, diarreias constantes, incontinência, cansaço e a cama e essa imobilidade. O esquecimento é o que mata. Queria não pensar. Pra poder viver da cama pra sala, da sala pro banheiro, do banheiro pro quarto, do quarto pra rua, da rua pro trabalho e voltar todo dia ao mesmo lugar. Daria pra fazer tantas coisas. Pequenas coisas. Uma de cada vez.

Vamos… Vamos aos últimos remédios de toda manhã. Mais uma caneca de café e podemos dizer, ao ligar o computador, que “antes tínhamos tempo, hoje temos relógios”.

Quem reparou nos cartões, nas frases edificantes, nos vídeos fofos?

É isso que sabemos fazer. Nós, os fazedores. Uns bilhões de neguinhos, todo manhã, fazendo aquilo que melhor sabem fazer. Agora imaginem esses bilhões ao longo de séculos e façam as contas.

Depois não venham reclamar que não acertamos uma.

Preciso aprender a morrer. E já.  


Um comentário:

  1. Então, Almitra falou, dizendo: “Gostaríamos de interrogar-te a respeito da morte.”
    E ele disse:
    “Quereis conhecer o segredo da morte.
    Mas como podereis descobri-lo se não o procurardes no coração da vida?
    A coruja, cujos olhos, feitos para a noite, são velados ao dia, não pode descortinar o mistério
    da luz.
    Se quereis realmente contemplar o espírito da morte, abri amplamente as portas do vosso
    coração ao corpo da vida.
    Assim diz o poeta Khalil Gibran acerca da morte. Seu texto me lembrou ele. Parabéns.

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