sábado, 19 de julho de 2014

A Ordem Natural das Coisas


The heart of the Circus, Marc Chagall, 1962



No dia marcado, o Conselho Superior da Ordem tem sobre si a escolha.

Apresentam-se vários, múltiplos e tantos candidatos. Muitos dormem na fila. Outros têm guardado o lugar por dias. E surgem os atrasados. E os que ali estão para “sentirem” o evento, ganharem experiência.

Grande é a balbúrdia. Grande é o nosso parque, tamanha a nossa diversão. Enorme o nosso auditório e inumeráveis as nossas salas e corredores intermináveis. De nomes volúveis. Tantos e muitos todos os andares, inclusive nos subsolos e nas escondidas garagens; na casa das máquinas; no poço dos elevadores; na cobertura; no átrio; no pátio; nos jardins cobertos; nas áreas de laser; nos campos adjacentes e circunvizinhanças urbanas e rurais… Grande é a nossa expectativa. Contínua e infinita permanece a nossa esperança.

Rádio, TV… Mídia geral. Tudo conectado. Tudo ligado na catarse final. Reportagens, comentários, estatísticas. Comparações. Equivalências. Previsões. Otimizado o resultado, tudo dentro do roteiro pré-fabricado que sai mais barato se bem planejado o lucro.

Colaboradores e admiradores amparam a jactância de possuir a mais bela armadura, o ídolo. Mas uma e apenas uma será escolhida. E, pelo tempo que durar seu “reinado”: admirada, comentada, retratada, cantada em prosa e verso até que chegue a hora de nova escolha, de novo engenho que nos ocupe os dias.

Eis que temos de tudo. De todos os modos, jeito e maneira. Pra todos os gostos. Cor, tamanho, forma… Materiais caros, raros, esdrúxulos. Tudo previsível. Mais do mesmo.

Importante é participar. Ninguém espera nada além do mero evento. Ninguém espera nada além do mero ornato. Ou alguém espera que uma armadura seja deveras?

Não! Digam-me: quem é este maluco ou maluca ou os dois que se atreve a nos mostrar a verdade? A acinzentar o brilho deste artifício? Em nome do quê nos contradiz? Está claro: uma armadura é uma fantasia. A fantasia é a própria armadura, pontificam os técnicos. Que mau gosto, replica minha vó, a torcer o nariz diante da tentativa de subversão da ordem natural das coisas. Viemos aqui pra nos divertir ou o quê, protestam os convivas.

E tome furor. Indignadas, nossas bochechas se tornam rubras. E sobrevêm a raiva. Danada discordância. Santa raiva, a nossa, dela. E exigimos punições, condenações, sacrifícios, execuções… Misseis e pedras disparados… Mas eis que captam nossos ouvidos uma voz isolada, uma remota fala, um débil apoio que reforça nossa crença de que somos e seremos tolerantes com o imprevisto, inesperado. Mesmo quando choca tanto. Como choca agora. Faz parte: dirão os compêndios. Diremos em suma.

E absorveremos. E criaremos outro concurso. Outros. Nós, os competitivos. Nós, os contendores. Nós, os colecionadores de figurinhas.

E na hora marcada o Conselho Superior da Ordem dará a palavra final, o voto definitivo. E mesmo que discordemos pontualmente da escolha, faremos de tudo para que a vida seja o mais próxima da felicidade possível porque é assim que tem que ser e está sendo e tem sido.

  

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