sábado, 12 de abril de 2014

De onde vem, pra onde vai nossa bondade?


Alegoria da Bondade, Tintoretto, 1564


Houve uma melhora. Recordo que quando aprovaram a lei que isentava os idosos do pagamento de passagem nos coletivos, era um terror. Motoristas costumavam acelerar quando viam um velho no ponto; faziam cara feia quando eles precisavam descer pela porta dianteira; reclamavam, xingavam até… Vi casos de aberta hostilidade: uma mocinha recusou-se a ceder o lugar para uma senhora, sob alegação de que a “velha” deveria estar em casa fazendo tricô e não incomodando as pessoas que trabalhavam. Foi preciso um jovem com aparência de roqueiro puxar a renitente pela gola de blusa e tudo se encaminhar para a normalidade. Tempos duros e truculentos, aqueles.

Quanta coisa mudou de lá pra cá! Hoje, longe de estar aquele conforto todo, já existem os lugares reservados, o piso dos ônibus foram rebaixados, não trafegam mais com as portas abertas e, sobretudo, existe mais atenção com os vovôs e vovós nos coletivos. Vocês podem constatar a qualquer hora do dia, em qualquer linha desta cidade. É bastante comum vermos cobradores e motoristas solicitando – em voz alta, às vezes gritada – que, por favor, cedam lugar ao idoso; que não é possível trafegar com um velhinho ou velhinha de pé, sob risco de caírem, se machucarem e a culpa recair sobre quem? Eles, os responsáveis pelo ônibus.

Pois é, de lá pra cá muita coisa mudou. Mas mudou por conta de sanções, multas principalmente. Motoristas e cobradores, aos poucos, foram abandonando aquela postura de indiferença e descaso muito mais porque certamente começou a pesar no bolso e não porque pararam e pensaram que um dia ficarão velhos e gostariam de receber um bom tratamento.

Mas esta “bondade” tem lá seus limites. Semana passada, usufruindo do meu novíssimo cartão de idoso, desci, como faço todos os dias, para o centro da cidade, a fim de garantir, ainda, o leitinho das crianças. Na altura das Clínicas, uma mulher com bengala entrou e foi aquele zunzunzum – todo mundo se mexendo, um tal de olhar pros que estavam sentados e nada deles se tocarem. O motorista, de olho no espelho retrovisor, foi logo avisando: “só saio quando esta senhora estiver sentada”. Empurra daqui, empurra dali, alguém cedeu. E lá fomos em direção à Paulista, alegre e felizes por termos presenciado mais uma das muitíssimas manifestações de solidariedade entre nós, mortais comuns.

Quando chegamos em frente ao Belas Artes, uma multidão com bandeiras de centrais sindicais começou a atravessar a Consolação na direção da Angelica. Umas três mil pessoas – li mais tarde. Em fila indiana. Motoqueiros logo se aglomeraram em sua área exclusiva, à frente de todos os carros e deram inicio a um bafafá: abram caminho; vão trabalhar, vagabundos; isto não é democracia; onde já se viu, impedir o transito; fora Lula… E foram por aí afora… O motorista ria, orgulhoso: é isso aí, tem que ir pra rua mesmo ao que o cobrador vociferava que era um o fim da picada, como é que a polícia não vê aquilo, deviam descer o cacete naquela cambada de comunista. Não deu um minuto, quatro policiais da Ronda apareceram e com a costumeira truculência dirigiam-se agora aos motoqueiros a quem interrogavam: E se fosse vocês? E se fosse vocês. Meu queixo caiu mais uma vez.

Realmente, o povo brasileiro não tem nada de simples. Só uma lei nos explica: precisamos de lei.




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