A Inspecção, William Hogart, 1743
O dia era
pacato. Na cidade, cada um de nós vendíamos o peixe sob o olhar
arguto dos vigilantes do peso. No intervalo, quando o Canal Legal deu
em manchete que haviam sido presos meia dúzia de fumantes no Largo
das Mercês, temeu-se o pior não fosse o comercial de cerveja ser
inédito e contar com a participação do Maior Pegador da Paróquia
que, obediente ao roteiro, assume com exclusiva e arguta verve
humorística e artística a missão de charlar um trio de incautas
numa festa rave de fim de semana em Búzios. Sucesso total... deu nos
Jornais (com “J” maiúsculo para diferenciá-los da dita e
maldita imprensa marrom e sensacionalista) na manhã seguinte.
Sem que o
intervalo tivesse acabado, Hermes levanta-se... Ops, desculpem minha
indelicadeza, introduzir assim sem mais nem menos uma personagem sem
o devido cuidado de apresentá-lo, que lástima. Data vênia, adiante
direi de quem se trata. Por enquanto, devo insistir no meu pedido de
desculpas quanto ao fato de enfiar gente na história sem que haja
uma boa preparação e tácito acordo previamente discutido com os
leitores individualmente. Imperdoável, autoflagelo-me. Por outro
lado, sabedor que somos (pelo menos no meu caso em particular posso
lhes garantir que tenho plena convicção) através de exaustivas
pesquisas levadas a cabo por altíssimos institutos, cujos resultados
e consequências são largamente aceitos e atestada por exímios
pontas de lança no domínio das belas e úteis artes de bem fazer as
coisas, “uma boa história seria apenas uma história não fosse
o fato dela prender o leitor”.
Reparem
que nesta pequena digressão procuro fornecer algumas indicações
que reputo de grande valia a você, leitor atento aos meandros
labirínticos que já se desenha a esta altura do conto. Notem que o
caminho que desejo trilhar nestas mal traçadas linhas, a conduzir
aquele referido personagem que, se não me falha a memória, apareceu
cerca de dez ou doze linhas acima (desculpem minha imprecisão,
reconheço que a pressa causa imperfeições e tropeços outros
geralmente mal interpretados) e, se não me engano, mal teve tempo
para dizer a que veio premido pela necessidade de atender algo
urgente. Não foi assim? Levantou-se e, podemos deduzir que saiu sem
dar qualquer satisfação. O que o fez largar o prato de arroz com
feijão ainda quente sobre o balcão? Causa espécie tal atitude, e
aqui interrogo: havia algo familiar na notícia? Estou me fazendo
acompanhar por ti, racional leitor? É que cansa provocar canseiras.
Assim, trago a pergunta que deveria ter sido formulada a uns dois
parágrafos atrás: quem é este sujeito que entra e logo sai
causando, sem ao menos ter sido apresentado? Pelo exposto, é óbvio
que não deixou boa impressão, visto ter reagido de modo insperado e
inaudito no momento mesmo em que estávamos todos no intervalo e a
Repórter Bonitinha surge numa edição extraordinária do Jornal
Televisivo do Meio Dia do Canal Legal avisando que uma trupe de
fumantes havia sido presa no Largo das Mercês às dez horas da manhã
daquele dia pacato. O que você, perplexo leitor, pensaria se um colega
seu agisse de modo absolutamente fora da ordem durante a exibição de matéria
jornalistica no telejornal legal do meio dia durante o intervalo
naquele dia pacato quase parecido com um sonho de verão?
Consideraria uma conspiração? Consideraria a existência dalguma organização criminosa com o fino propósito de
seduzir jovens tal qual qualquer um de nós que naquele dia éramos
ainda todos jovens aptos a agarrar a vida pelos cabelos e virar as
coisas pelo avesso? Ou consideraria a borbulhante imaginação deste que vos fala, envolvida em prós e contras, débitos e créditos, deves
e haveres, avidamente ingenua a ponto de tomar gato por lebre nesta
selva de cimento, suor e cerveja? Para onde você correria, confuso
leitor?
Convém
que diga, a bem da verdade, que não faço a menor ideia de quem seja
o Hermes. Sim, convivo com ele por cerca de três anos mas daí a
dizer que sei quem seja vai uma grande distância. Para ser franco,
não sei se é gordo, magro, alto, baixo, preto ou branco. Nos vemos
de segunda a sexta mas, e daí? (…) Cada um de nós faz o seu.
Entramos e saímos do escritório, não damos bola pra ninguém e
somos retribuídos. O que posso pensar de alguém assim? (…) Minuto
aí! Não tirem conclusões apressadas, invoco meu direito de ficar
calado. (…) Claro, tudo é possível. (…) Sim, é possível que
ele tenha esqueletos no armário, quem não os tem, não é verdade?
Contudo, posso lhes garantir que a mim ele nunca pediu fogo. Poxa
gente, qual é, tenho memória de elefante, podem crer! (…) Como
sei? Não sei... ouvi falar. (…) Claro que não, né. Procuro me
informar. (…) Está bem. Se que souber de alguma coisa, telefono.
Tenho que assinar alguma coisa? (…) Claro que não vou sair da
cidade, pra onde eu iria?
“Cara,
agora fiquei bolado. Quem era mesmo o Hermes, que naquela manhã
pacata, quando ainda éramos jovens, durante o intervalo do almoço
naquele boteco, no exato momento em que a Repórter Bonitinha leu em
edição extraordinária no Telejornal do Meio Dia do Canal Legal uma
nota sobre a prisão efetuada pelas autoridades sanitárias, em nome
da saúde pública, de meia dúzia de fumantes no Largo das Mercês?
E porque ele saiu daquele jeito abrupto, sem dizer palavra, deixando
o prato de arroz com feijão e bisteca, ainda quentes, sobre o balcão
do boteco? E porque jamais voltou pra contar o final da história?”
Também gostaria de saber onde isso iria dar. Hehehe!
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