sábado, 4 de fevereiro de 2012

A Tradição Relativa VI


Deucalião e Pirra, Giovanni Maria Bottalla, 1635

O Dilúvio Grego

No inicio, a humanidade vivia como deuses – tranquilos e em paz. O trabalho não existia, porque a Terra, espontaneamente, produzia tudo. Os primeiros seres humanos jamais envelheciam e, após deixarem esta vida, recebiam o privilégio de se tornarem intermediários entre os deuses e os mortais, encarregados de vigiarem a justiça dos governantes. Quando Zeus decidiu que manteria este grupo limitado a Trinta Mil Imortais Invisíveis, uma parte da humanidade negou-se a prestar-lhe culto. Embora contrariados, os deuses permitiram que recebessem a honra de tornarem-se também intermediários entre o Céu e a Terra mas agindo de baixo para cima, na outra vida. Os que sobraram, foram irredutíveis. Entregaram-se ao império da força e da violência. Por isto foram chamados de Filhos da Lança, completamente indiferentes à justiça. Instalou-se a trapaça e a dissimulação. Todos guerreando contra todos, pilhando, conspirando, fraudando. Em nome do maldito desejo de possuir, árvores foram cortadas das encostas por puro divertimento. A terra foi demarcada, sugada toda a sua vitalidade, na busca insana de metais preciosos. Mãos ensanguentadas brandiram armas mortíferas na direção do céu, ameaçando até as estrelas. A Terra transformou-se um vale de sangue e lágrimas.

Zeus convocou a assembleia dos deuses para discutirem o futuro da humanidade. Atená interviu, solicitando que fosse dada mais uma oportunidade aos seres humanos. Zeus decidiu andar pelo mundo para ver se encontrava alguém justo, alguém que não tivesse sucumbido à loucura e ao descomedimento. Ao chegar na Arcádia, revelou-se e todos zombaram dele. Dirigiu-se ao palácio do tirano e foi recebido durante um banquete onde era servido carne humana. Indignado, Zeus os amaldiçoou e, decidiu ali mesmo afogar o resto da humanidade num grande dilúvio. Aprisionou o vento norte e baniu as nuvens. Permitiu que o vento sul zunisse suas asas gotejantes e farfalhasse seus véus negros como breu. A fúria incontrolável de Zeus recebeu ajuda de Netuno que, chamou todos os seus rios e lhes disse que abrissem suas comportas e decantassem o aguaceiro e as águas correram livres. Rios caudalosos cobriram as grandes planícies. Tudo foi varrido: flores, grão, gado, humanos, casas, cidades, bosques e os altares com seus fogos sagrados. Se algo insistia em se manter de pé, as águas engolfavam. Tudo virou um mar, um mar sem linha de praia. A inundação tomou todas as coisas, ou quase todas, e aquelas cuja água, por algum motivo poupou, acabaram conquistadas lentamente pela inanição.

Apenas os picos gêmeos do Monte Parnasso mantiveram-se acima das águas. E ali, apenas um homem e uma mulher conseguiram chegar. Deucalião e Pirra remaram sete dias e sete noites num barco construído por Prometeu, o eterno protetor da humanidade. Quando Zeus viu que o mundo era um grande oceano, que somente uma mulher restava de todas aquelas milhares delas, e só um homem entre milhares de outros, ambos inocentes, despediu as nuvens, liberou o vento norte e mostrou a terra ao céu e o céu à terra. Netuno baixou seu tridente e acalmou as ondas. E o mar novamente pode ver a praia, os rios entraram nos seus leitos e a inundação cedeu. Colinas ficaram à vista, árvores despontaram com suas folhas ainda barrentas. O mundo voltou à vida.

Deucalião, olhou em volta, vazio, em silêncio. As lágrimas escorreram-lhe quando disse à sua mulher: - Minha consorte, prima e parceira... Neste caos, olha: de toda terra, apenas nós dois! Pelo menos não estamos sozinhos, temos um ao outro. E choraram, choraram juntos. E pediram ajuda: - Ó Têmis, se a fúria dos deuses sempre ouve uma prece correta, lhe imploramos: diga-nos de que maneira nossa ruína e desolação pode ser reparada. Ajude-nos, tu, a mais gentil das deusas, a encontrar um caminho alternativo. E a deusa guardiã dos juramentos humanos, falou-lhes: - Arranquem suas túnicas, cubram a cabeça, e joguem os ossos de vossa mãe atrás de vocês. Pirra, com os lábios trêmulos, disse que não faria aquilo, que era uma impiedade. Mas a voz continuou repetindo o mesmo conselho por horas a fio. Por fim, eles entenderam que a terra era a mãe e as pedras seus ossos. E a cada pedra jogada por Deucalião, nasceu um homem. A cada pedra jogada por Pirra nasceu uma mulher. E a terra pode novamente ser repovoada.  


Um comentário:

  1. Belíssima passagem da mitologia, muito próxima à narrativa bíblica do dilúvio.

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