sábado, 31 de dezembro de 2011

Presente


Cartum, Duke


Quando cheguei ela estava com aquela cara de quem comeu e não gostou. Atirou o controle remoto sobre a mesinha de centro. O bichinho quicou duas vezes e foi parar debaixo da estante qual um cachorrinho assustado. Depois, bufou toda aquela raiva em muxoxos e resmungos audíveis no final da rua. Não perguntei o que havia, porque eu sabia o que havia. Aqueles modos eram por demais conhecidos. E não seria hoje que eu iria jogar algum combustível naquela fogueira. Aliás, há tempos tinha decidido que houvesse o que houvesse, sempre que houvesse, não discutiria, esperaria a poeira baixar e se ela, após alguns dias de cara amarrada, decidisse falar, ouviria tudo até o fim meneando a cabeça num forte gesto de concordância. Vinha funcionando... até hoje.

Hoje ela decidiu impedir que eu abrisse a geladeira e sondasse as reservas. Prostrou-se impávida entre eu a minha expectativa. Não recuei e a encarei com o semblante plácido. Pra que fiz isto! Avançou com as unhas desembainhadas e só não abriu uma avenida na minha cara por que, lembrando os ensinamentos do meu mestre de Tai Chi, desloquei meu ponto de equilíbrio alguns milímetros para a esquerda, o suficiente para que ela, qual uma montanha, desabasse sobre o piso de pinho comprado em doze prestações. Mas não caiu. O que pensam que sou, um monstro? Não permiti que ela chegasse ao chão. Aparei-a a cerca de meio metro e segurei a barra. Mas não a levantei de imediato. Deixei que sentisse o peso da gravidade, numa tentativa de que tomasse consciência do precipício em que se jogara.

Mais uma vez errei. Devia já estar acostumado. Mas, não, sempre acredito na possibilidade de mudança. Sempre penso que a experiência é capaz de nos fazer enxergar a verdade. De nos fazer compreender que aquilo que estamos prestes a fazer pode ser feito de outra maneira. Sempre aposto no contar até dez. Analisar todas as possibilidades antes de partir, antes de jogar a pedra, antes de julgar, de decretar a sentença, de ligar a chave, de apertar o botão, de dar aquele passo que nos atolará para sempre no reino das desculpas.

Não mudou quando a ergui. Chutou a almofada displicente, a mesma onde estivemos recostados noite passada entre dengos e afagos. Ela esquece fácil. O poço sem fundo onde às vezes se ancora tem a propriedade de apagar toda lembrança, de projetar sombras sobre o nosso futuro incerto. Mas não fiz o que ela esperava. Não entrei na cozinha. Fiquei parado no umbral, à espera do seu próximo movimento. Agachada, tateando os confins da estante, parecia outra. Aquela outra que eu temia e vinha buscando de todo jeito evitar. Aquela outra de cotovelo afiado, capaz de me fazer calar ao menor sinal de discordância ou de desatenção diante da sua loquacidade. Novamente na posse do controle, sentou-se costumeiramente do lado esquerdo do sofá para assistir ao canal de documentários. Senti que devia acompanhá-la. Manso, como um colegial à espera de aprovação, mostrei interesse no vídeo.

- Esta hora não tem nada que preste! E começou a zapear através dos 120 canais disponíveis. Estancou numa pregação. Não contestei. Quem era eu para contestar? Estava apelando para o televangelista numa clara indicação de que devia entregar-me, render-me ao poder curativo do espírito santo, confessar todos os meus pecados e alcançar a salvação. Fiz-me de desentendido. Ou melhor, ignorei aquela estratégia. Não tinha feito nada de errado, estava com a consciência tranquila. Ela sim, é que estava extrapolando, exorbitando, indo além do razoável. Não podia ceder. Mesmo que custasse o nosso casamento. E preparei-me para o pior. Mas não foi preciso muito. Virou-se para mim, fez cara de te-perdoo-mas-que-isto-não-se-repita e lembrou-me do nosso mais sagrado compromisso: estar disponível para o outro, sempre, a qualquer hora, em qualquer lugar, em quaisquer circunstâncias. E acrescentou, com um divertido toque de malícia: - Posso saber porque o senhor não atendeu ao celular? Como posso confiar no senhor se não sou capaz de saber onde o senhor está?



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