sábado, 17 de setembro de 2011

A Tradição Relativa V - 1ª Parte


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O Companheiro de Morte

Através de um tradutor soube que um estudioso leu na obra de um mestre a narração de um orgulhoso barba branca, numa roda de cameleiros, tuaregues, berberes, árabes, núbios, etíopes e europeus, quando da elevação da repressa de Assuã por ordens do Lord Kitchener, para manter seus subordinados ocupados com seus próprios assuntos, visto a Itália ter declarado guerra à Turquia, bombardeado e ocupado Trípoli, Cineraica e as ilhas Dodecanesas. Reunidos no mercado da cidade de El Obeid, a sudoeste de Cartum, no Sudão, em 1912, durante sete dias vários contadores revesaram-se na contação de histórias. No oitavo, Arach-ben-Hassul, descendente de uma das últimas famílias sobreviventes da antiga guilda dos artesãos de cobre, levantou-se e disse: “Agora sou eu que vou contar”. E falou de um tempo remoto em que aquela região era verde e poderosa; que um dos quatro mais ricos reis da terra, o Nap de Napata do Cordofão, era proprietário de todo o cobre e ouro da região; que mantinha domínio sobre muitos povos, todos fabricantes de armas e fornecedores de escravos para a corte; que o reino era grande exportador de riquezas para todo o Ocidente; que, embora fosse rico e poderoso, sua vida era a mais triste e limitada, pois cada Nap de Napata podia reger apenas por um breve período de anos e, que de um modo ou de outro, tudo isto junto foi a causa da destruição do outrora próspero reino de Kash. Infelizmente, esta região hoje não passa de um deserto físico e cultural. Mas deixemos o chefe dos cameleiros falar, através do mestre, do estudioso, do tradutor e deste amador que para vós escreve. Assim:

Em todo o reino, todas as noites, os sacerdotes observavam as estrelas, faziam oferendas e acendiam fogos sagrados por medo de perder a trilha das estrelas e ficarem sem saber quando o rei deveria ser morto. Assim, como tantas vezes antes, aquele dia chegou. Touros foram sacrificados; todos os fogos da terra foram apagados; as mulheres encerradas dentro das casas e, após terem decapitado o rei, os sacerdotes acenderam o fogo novo e um novo rei foi convocado: Akaf, sobrinho do imolado.

O primeiro ato oficial de cada Nap de Napata era decidir quais pessoas deveriam acompanhá-lo no caminho da morte. Elas eram escolhidas entre os que lhe eram mais caros e o primeiro nomeado seria o que dirigiria os outros. Um escravo chamado Farlimas, célebre por sua arte de contar histórias, chegara à corte alguns anos antes, enviado como presente por um rei do Extremo Oriente. E o novo Nap de Napata disse: 'Este homem deverá ser meu primeiro acompanhante. Ele me entreterá até a hora da minha morte e me fará feliz depois da morte'. Para cuidar da chama sagrada, que deveria permanecer acesa durante o período daquele reinado, os sacerdotes designaram Sali-fu-Hamr, a irmã mais nova de Akaf. Ela devia cuidar do fogo sagrado, manter-se absolutamente casta por toda a vida e ser morta, não junto com o rei, mas imediatamente após, no momento de acender a nova chama. Mas Sali-fu-Hamr tinha medo da morte e, quando ouviu que a escolha havia recaído sobre ela, ficou apavorada.

O rei viveu, por um tempo, feliz, em grande deleite, desfrutando da riqueza e majestade de seu domínio. Passava as noites com seus amigos e com todos os visitantes que chegavam à corte como emissários. Mas numa noite fatídica ele compreendeu que, a cada um de seus dias jubilosos, andava um passo adiante em direção à morte certa e ficou com muito medo. Foi incapaz de afastar aquele pensamento assustador e, deprimido, pediu que Farlimas contasse uma história. 'Chegou o dia em que você tem que me alegrar'. Farlimas começou a contar uma história e todos escutaram. O rei e os hóspedes esqueceram de beber, esqueceram de respirar. Até os escravos esqueceram de servir e também de respirar. A arte de Falimas deixou-os envolvidos numa deliciosa embriaguez. O rei tinha esquecido seus pensamentos de morte.

Naquele dia, Akaf e seu séquito mal puderam esperar até a noite e dali em diante, todos os dias, Farlimas era convocado para desempenhar seu papel. A notícia de suas narrativas espalhou-se por toda a corte, a cidade, o país. O rei, a cada dia, presenteava-lhe uma bela peça de vestuário. Os hóspedes e emissários davam-lhe ouro e pedras preciosas. Ele ficou rico. E quando andava pelas ruas, seguido por uma tropa de escravos, distribuía presentes aos necessitados. As pessoas o amavam e passaram a desnudar o peito para ele, em sinal de respeito. Sali, ao ouvir o milagre, enviou uma mensagem ao irmão: 'Deixe-me, apenas uma vez, ouvir Farlimas contar uma história'. E um dia Sali veio. Farlimas viu Sali e, por um momento, perdeu seus sentidos. Tudo o que ele via era Sali. Tudo o que Sali via era Farlimas. Tirando os olhos de Sali, o narrador começou. E sua narrativa foi no início como o haxixe, que leva a um suave adormecimento e logo conduz os homens da inconsciência ao sono. Depois de um tempo os hóspedes estavam dormindo; o rei estava dormindo. Ouviam a história apenas em sonhos, até terem sido completamente arrebatados. Mas Sali permaneceu desperta. Seus olhos estavam fixos em Farlimas. E quando ele acabou a narrativa e levantou-se, ela também levantou. Farlimas andou na direção de Sali e Sali andou na direção de Farlimas. Ele abraçou-a; ela abraçou-o e disse, olhando-o nos olhos: 'Nós não queremos morrer. Devo pensar em uma maneira de ficarmos juntos'.

Naquele dia, Sali foi ao sacerdote supremo e quis saber quem determinava quando o velho fogo seria apagado e o novo aceso. O sacerdote disse-lhe que isto era decidido por Deus. Diante da insistência da moça em saber como Deus comunicava sua vontade aos sacerdotes, o velho respondeu: 'Todas as noites observamos as estrelas. Nunca as perdemos de vista. Todas as noites observamos a lua e sabemos, de uma noite para outra, que estrelas estão aproximando-se da lua e quais as que estão afastando-se. É por isto que sabemos. Fazemos isso todas as noites. Se passasse uma série de noites em que nada pudesse ser visto, não seríamos capazes de reencontrar nossas estrelas e não saberíamos quando o fogo deveria ser extinto e aí não estaríamos em condições de exercer nosso ofício'. Sali mencionou que as obras de Deus eram magníficas e que a maior, entretanto, não era a sua escrita no céu. Sua maior obra é a nossa vida na terra. Lição que aprendera na noite passada. O sacerdote não entendeu e quis saber do que ela estava falando. Ela respondeu que Deus deu a Farlinas o dom de contar histórias como jamais existiu igual, maior que sua escrita no céu. O velho, horrorizado, disse que ela estava errada e levantou-se para abrir a porta. Sali argumentou: 'A lua e as estrelas você conhece. Mas você já ouviu as histórias de Farlimas'? O sacerdote olhou para o chão e balançou a cabeça negativamente. 'Como, então, pode pronunciar um julgamento? Asseguro-lhe que mesmo vocês sacerdotes, ao ouvir, se esquecerão de vigiar as estrelas'. O ancião encarou-a e ela, sentindo o ardor do fogo, continuou: 'Prove-me apenas que estou errada e que a escrita nas estrelas é maior e mais poderosa do que esta vida na terra'. O velho pegou-a pelo braço, colocou-a na soleira da porta e despediu-se: 'É exatamente isso o que vou provar', e fechou a porta.

Akaf recebeu uma solicitação do alto sacerdote para que fosse permitido ao clero entrar no palácio naquela noite afim de que pudessem ouvir as histórias de Farlinas. O rei consentiu e assim, quando o sol se aproximava da hora de se por e o rei, seus hóspedes e os emissários estavam reunidos, juntaram-se a eles todos os sacerdotes, que despiram a parte superior de seus corpos e se prostraram no chão. O supremo sacerdote disse: 'Foi declarado que as histórias de Farlimas são as mais magníficas das obras de Deus'. O rei disse a ele: 'Vocês podem decidir por vocês mesmos'. O salão estava repleto de gente e Farlimas abriu caminho entre ela. 'Comece, meu querido Companheiro de Morte'. Farlimas olhou para Sali e Sali para Farlimas. Tirando os olhos de Sali, o narrador começou. E sua narrativa deixou-se ouvir enquanto o sol estava se pondo. Era como o haxixe que anuvia e transporta, que induz ao relaxamento, que leva ao desmaio profundo. De maneira que, quando a lua surgiu, o rei, seus servos, seus hóspedes, os emissários e os sacerdotes dormiam um sono profundo. Apenas Sali estava desperta e quando o relato chegou ao fim, Farlimas ergueu-se e dirigiu-se para Sali: 'Deixe-me beijar esses lábios dos quais saem palavras tão doces'. Eles abraçaram-se, entrelaçando braços e pernas e deitaram-se entre aqueles que dormiam, conhecendo uma felicidade de partir o coração". 

Continua no próximo sábado...


2 comentários:

  1. ...Ler eu li todinho, mas não sei expressar o que achei.
    Íris Pereira.
    Obs. Pareces Nélida Piñon. É dificil entender.

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