sábado, 20 de agosto de 2011

Orô Finou


pratagy.net


Coruja rasgou seda por cima do telhado. Vai-te, agourenta!

Oraldina, guardiã do Sagrado Coração, caiu doente de repente. Diminuta, 52 anos, seis filhos. O que é, o que é, não houve diagnóstico, nenhuma resposta. Caiu doente e possessa, assim: do dia pra noite. Passou a gritar, gritar incongruências, indizíveis. Quinze dias gritando, os vizinhos arrepiados com aquela coisa sem coisa. Que sucesso era aquele? Oraldina não fazia sentido, só gritava, gritos de horror, labaredas, queimadura de gelo, secura braba, garganta arranhada, navalha, cacos de vidro, álcool em ferida, osso quebrado. Pavoroso.

Passados estes dias, quis ir para a rede. Passou outros quinze balançando-se, pra lá e pra cá. Nhec, nhec, nhec.... O marido e dois filhos revesavam-se nos cuidados, mas que cuidados, se não havia, se não sabiam. Não comia, não bebia, só balançava o corpúsculo pra lá e pra cá. Pendulo. Nhec, tic, nhec, tac... A filha do meio, grávida, veio visitá-la. Gritou que não entrasse, iria perder a criança.

Trouxeram o médico de aplicar injeção. 
- Na mão viu, porque lá nem pensar, onde já se viu, estranho enxergar minhas vergonhas
O doutor tentou ser gentil mas, a espetada desacertou, a canela fina arribou e ai ai como doeu a masculeza do receitador que vergou e fugiu. Era deixar. Engruvinhou.

No mês seguinte, levantou-se, passeou pela casa, deu uma volta pelo oitão, encheu todos os potes com água e soltou os passarinhos. 
- Tá boa, alguns disseram saudosos da paçoca. Mas Oraldina não fez paçoca, não salgou carne, não preparou maria-isabel nem lembrou do cajus no ponto pra cajuína, só perguntou pelo mais novo. 
- Tá viajando. Foi levar encomenda de malas pras bandas de Miguel Alves
- Mande uma carta avisando que é pra ele voltar. Quando chegar vou me esconder atrás da porta que é pra dar um susto nele
E riu sumida, imperceptível. Quando o rapaz chegou fez bu e correu se rindo, levada.

E cantou. Versinhos do arco-da-velha. Do tempo do onça. Do tempo do bufa. E a casa se encheu de perfumes. Quem era sério sorria, quem era alegre soltava gaitada. De onde tirava aquilo? E Oraldina ria, palitando o dente com a ponta da unha miudinha como se tivesse mastigado iguaria.

Quis cafuné. Veio a nora. 
- Faz daquele jeito. Gostava. A filha mais velha ensaiava muxoxo. Não tinha preferências, gostava e pronto. Na metade da tarefa, a moça ouviu um trec, na nuca. A cabeça rala tombou. Deitaram-na. Vieram as filhas. 
- Quero ir vestida que nem Santa RitaMas não usem a máquina, tem que ser costurada à mão
Vai saber porque! As moças, esmeradas, gastaram tempo de sobra, adiando, adiando... E Oraldina rindo, mangando de toda coisinha, dessas tais coisinhas sem qualquer significância. Mangou das moscas, das formigas, das aranhas... Mangou do bode velho, das galinhas poedeiras, do garnisé ... Só não mangou do marido que era enfezado. Pra ele declamou umas quadrinhas meio sem graça. 
- Doidou
Queria chupar carambolas, mas engasgou, tossiu invisível. Lacrou os olhos. E acenderam velas. O genro pegou uma e botou-lhe na mão. Todos em volta. Nenhuma lágrima, já haviam derramados córregos uns, outros rios. Aguardaram munganga, não veio. Levantou o dedo e disse: 
- Prestem atenção, prestem muita atenção. Estão prestando atenção? Então... 
Tum! Sumiu.

Velaram-na no terreiro, sobre três tábuas e dois cavaletes. Tiraram fotografia. Todos de preto. Menos ela, que ficou muito bonita de branco.

Passado uma semana, as duas mais novas estavam deitadas na cama alta quando caçula sentiu uma pontada no ombro. 
- Que é? É mãe? 
Não se virem. Vocês duas prometeram rezar missa. Esqueceram, como esquecem requeijões mordiscados nos buracos das paredes?

Oraldina não descuidou dos seus. Nunca.  


4 comentários:

  1. Gostei muito, tanto do tema, quanto da voz.

    sobre a Crônica das trevas, caso tenha sido verídica, em conversa com meu sogro, que passou por mal parecido, disse que nele foi índice de diabetes.

    abraço

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  2. Beleza de conto! Alguma coisa da linguagem reconheço como da minha terrinha no norte do RJ. Gostei muito!

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  3. Lindo, Paulo! A gente sente tudo. Coisas mesmo da terra, na linguagem da terra... Um abraço.

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  4. A gora como num passe de mágica escrevestes como se minha própria mão segurava a tua ou a tua segurava a minha , como quando criança que ainda não sabemos riscar direito as letras, parecia que eu estava sentada em teu colo, no teu pensamento...Falaste do meu dia a dia de pequenina lá na malhada dos Britos, falaste sobre coisas que sei mas que não gosto de contar. Lindo, realista, diferente para os dias de hoje, porém vividos nos dias de ontem.
    De tirastes este tem mais, muito mais...
    Um forte abraço.
    Íris Pereira

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