sábado, 9 de julho de 2011

Ossos Ancestrais

Detalhe d'A Criação de Adão, Michelangelo, 1508-12


Façamos o ser humano à nossa imagem
e segundo nossa semelhança, para que domine
sobre os peixes do mar, as aves do céu,
os animais domésticos, todos os animais selvagens
e todos os répteis que rastejam sobre a terra
Genesis, 1-26


I
Vinte e oito de janeiro do ano da graça de mil quatrocentos e setenta e oito. A tormenta passou. O Bom Deus resolveu dar uma trégua no furor das águas. Matias, ao contrário, não concorda. Ontem, em pleno temporal, mandou pendurar dois grumetes no mastro principal. Acusados de terem roubado água doce, ordenou cinquenta chibatadas e a obrigação de beberem a própria urina, urina que nenhum de nós mais possui. Ninguém ousa enfrentá-lo. Europeus, lânguidos e escorregadios, nossa vitalidade, há muito está perdida. Resta-nos apelar para Deus, que queremos justo, equilibrado, bondoso... Temos que continuar. Em nosso rastro dardeja a necessidade. Desistir agora seria cobrirmos-nos de vergonha pela inutilidade do propósito. Entendo meu irmão. Porém, que mais de inferno nos aguarda? Resistiremos à jornada? Matias alimenta-se desta agonia, do nosso desespero, matou o resto de coração que um dia acreditamos possuir quando nos convenceu a embarcarmos nesta quimera. Sem saída, vitimados por seu mal ou por nossa própria ambição, não temos outra coisa a fazer senão continuar, porque morrer agora é o que mais desejamos. Dificil tem sido olhar nos seus olhos vítreos, rajados por uma raiva monstruosa, pulsante em cada cicatriz, adquiridas na salvaguarda de dois ou três mapas duvidosos. Tudo consumido nesta viagem. Os ossos dos nossos ancestrais. Tudo empenhado neste pesadelo do qual não temos mais nenhuma esperança de acordar. Surdo, olhos acorrentados no horizonte, dia e noite. Matias escuta apenas o demônio que o mantém acorrentado e servil. Porque ainda não despencamos na margem do mundo?, perguntam-me os marinheiros, repletos de histórias tenebrosas habitadas de ignorância, malícia e frustração. Tão longe estamos, tão longe de qualquer redenção, tão longe que nunca chegaremos... atazanados, vestígios de sombras, vagando através das planícies do pânico... Meu irmão fortalecido na insânia. A medida que o medo cresce mais nos aferramos a ele, afinal é único que parece conseguir respirar os ares turvos da obstinação, a nos instigar à fuga, a fuga que não alivia mas nos quebranta. Não temo por mim, temo por ele. Sobreviverá a todos nós e arcará com todo o ônus. Sua lucidez é ela própria danada. Ele sabe o que o espera e o que a história lhe reserva. Nuno, meu filho, seja piedoso se um dia confrontá-lo.


II
Eu, frade Vicenzo de Alencastro, a serviço da régia magestade, munido de tinta e papel, cogito: Nuno é melancólico. Muito parecido com o pai. Pobre Diogo! Doce e ingênuo o suficiente para deixar-se matar. Precisamos de martires? Porque temos que fundar uma nação sobre este sangue? Longe de mim, oh Deus, questionar os teus designios. Bem sei que são sementes da tua justiça porvindoura, aliceceres de um sonho reclamado e urgente. Oh, meu bom Pai, equilibra tua balança: o prato dos mortos pesa mais que o dos viventes... Os tambores prenunciam o ataque anunciado, uma vaga de celerados que nos varrerá como inúteis, nós, o cancro desta terra, Senhor!, nós os atrevidos de liberdade?... Tomo meu último gole de chá... Á beira mar, as palmeiras contemplam o vai e vem monótono dos novos chegados da Africa distante. Ignomínia a contaminar o esplendor do céu. Logo ali está o mar e nenhuma esperança. Naus e naus chegam carregadas de braços. Descarregam a servidão e partem estufadas de tesouros rumo a construção de quantos impérios. Não há poder capaz de estancar esta chaga. Tudo em teu nome, oh Santa Cruz. E se em teu nome tudo isto é perpretado, em teu sagrado nome, um dia, tudo deverá ser destruído, ó Paz Impossível. Um vento sussurra ao meu ouvido palavras de ódio... Bondoso Deus, seja feita a tua vontade, que chegue, para Tua Infinita Glória, o inicio do fim.


III
Maíra, meus filhos, minha esperança... Para onde irei eu, sobrevivente pra que? Minha missão é esta, Senhor, nada ter de cuidar? Ter mãos apenas para destruir, nunca para carinhar? Vai-te de mim sonho: não poder indicar ao filho a arvore mais alta, não poder apontar-lhe o pássaro mais canoro, a caça mais gorda, não poder ensinar-lhe o manejo do arco, tampouco da lira... não ajudá-lo a planejar e construir a canoa que o transporte até a outra margem deste rio envergonhado... Quão solitário, Senhor, é o destino que me reservaste, quão amargo o vinho para alimentar minha alma. Enterrarei meus mortos e, quem sabe um dia, lavarei o sangue destas matas. Mas estas árvores, estas plantas tão serenas, estes animais de olhares simplórios, são tão indiferentes à minha agonia... A indiferença deste teu paraíso me assusta, Senhor! A imparcialidade dos teus mistérios permite que ali, bem ali, no centro deste teu imenso e fecundo solo impere, absoluto, sem pecados, porque já os cometeu todos, meu tio, Matias Alvares, o dono da vida e da morte de tudo rasteja, anda, voa e nada... Sei que devo caminhar, esquecido de memória e desprovido de lágrimas.


2 comentários:

  1. ...Eu hem! Sou uma pobre cearense , nem sei que vim fazer aqui, agora me meto com esses escritores , vou acabar ficando maluca. Nem sei porque leio o que eles escreve e descrevem? Oxente! Eu penso, reviro o pensamento, dou nó no juízo, mas não entendo mesmo patavina do que ele escreve, vou fazer o seguinte : Continuo lendo todos porque sou teimosa que nem uma mula, mas não vou me esforçar não. Fico aqui no meu canto e nada mais de comentar. Eita homem doido! Esse olhar assim de timidez por traz dos óculos deve ser é loucura, dizem que os loucos são mais inteligentes que quem é sã.
    Íris Pereira.

    ResponderExcluir
  2. Olá, Paulo Laurindo

    De todos os seus escritos, este é com certeza o de que mais gostei pela vontade de querer mais. Daria um belo romance!

    Um abraço.

    ResponderExcluir