sábado, 30 de julho de 2011

O Quarto Escuro

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Só do amor há de surgir meu desdém e minha ave anunciadora; não do pântano
Nietzsche, Assim Falava Zaratustra



Tirara tudo? Tem mais. Onde? Por aí, escondidos. Estava atrasado. E daí? O espaço precisava estar limpo antes da lua cheia. Que diabos tem a lua cheia com isto? É o prazo. Dane-se o prazo. Como assim, pensei que tivéssemos um acordo? Sei lá... é muita porcaria. Agora não tem mais volta. Estará limpo na lua cheia, satisfeita?

Subiu a escada chutando os espelhos dos degraus. Aquelas biqueiras faziam um barulho miserável. O ranger das dobradiças o deixava mais irritado ainda. Permitira chegar àquele ponto e agora o prazo. O cacete! Desarmaria aquela bomba? Cansado, saco cheio! Deu uma de bonzinho, falou manso. Mas, e o esporro de ontem? Ainda tinha nos ouvidos os gritos e as ameaças, ameaças que já estava acostumada a receber todas as manhãs embora fosse dele a tarefa de livrar-se das tralhas, teias de aranhas, ninhos de ratos e legiões de baratas e percevejos a impedirem vida naquele cômodo. Talvez por isto.

O cheiro acre da umidade gretando mofo nas parede (pobre pintura! - pálido e carcomido azul) infiltrou no seu cérebro a lembrança do momento em que decidira candidatar-se ao combate, quando simulara possuir culhões, determinado a trazer àquele ambiente ares de bons modos. Agora, raiva e melancolia. Atolado em areia movediça: naquela cloaca, ou seria covil? Nenhum imigrante boliviano seduzido pela fortuna se submeteria, com certeza, quanto mais crianças e muito menos uma mulher com pretensões artísticas. Muquifo. Era assim, destinado ao fracasso? Onde vivia o bom senso, a autoestima? Tinha que ser assim? Detonar, permitir que uma enxurrada levasse tudo pro ralo! Mania de reformar, de jogar uma capa por cima para depois dizer que sim, temos alternativa, criamos novas possibilidades. Mês que vem novos buracos, algum encanamento esquecido, uma precária instalação... Mexer na estrutura nem pensar, botar abaixo e construir deveras - fora de cogitação, pois não? É assim que o mundo gira e a lusitânia roda quando o prazer acaba. Ali, prisioneiro da própria lambança, comprometido até o talo. Vale a pena cuidar de quem não cuida de nós? Vamos lá, mecanicamente, só mais um dia. Amanhã será diferente? Já não cria. Só mais um dia, quem sabe...

No mundo do GPS, com margem de erro de aproximadamente poucos metros, todos conseguem chegar aonde desejam, na melhor relação custo beneficio. Assim, vale a pena fazer cálculos? Somar, dividir, subtrair, multiplicar. Porque não permitir que as sensações induzam percepções e danem-se as referências espaço temporal? E esta contagem em escala descendente, tendendo a zero, zero que nunca encontra! Poderia, se quisesse, atravessar aquela parede, não poderia? E porque o faria? Para flagrá-la? Jamais entraria no quarto para flagrá-la, embora sonhasse muito com isto (e ela nunca dera bandeira). Poderia entrar naquele banco e sair de lá impunemente com uma tonelada de dinheiro, quantos golpes na praça, resolveria? Poderia não cumprir com o trato, poderia deixar quantos projetos pela metade, poderia interromper a ação, poderia colocar uma bomba no alto daquele edifício, sair pelos parques atirando a ermo e depois sentar-se no meio fio e curtir o escorrer da meleca pela sarjeta afora, poderia jogar toda a merda do mundo neste ventilador, não poderia?... Então, terminaria o trabalho? Chega de enigmas, diferença que se alastra e se alarga, fosso, intransponível. Vai e vem, chove não molha, faz de conta, falta de....

No tempo de colégio aprendera este modo de interpretar as coisas, como se soubesse tudo e mesmo nunca tendo acertado mais que cinquenta por cento das questões nas provas, orgulhava-se de situar-se acima da média, era só uma questão de tempo, um dia descobriria seu talento inato e aí o mundo iria ver com quantos paus se faz uma canoa. A outra ficara lá, a espera de que ele um dia voltasse, após servir ao exercito, fazer o maior sucesso com uma banda de rock e ter conseguido comprar aquele anel de noivado que deixara prometido na tarde da despedida. Quantas histórias, quantos enganos, desde que... Chega! Bosta n'água não era. Poderia ser quem quisesse, a qualquer hora. Era alfa.

O menino e a menina entraram. A menina deixou-se sentar no primeiro degrau, enquanto o menino desceu dois e debruçou-se na corrimão. Está olhando o que? Vai estar pronto no dia do meu aniversário? Seu aniversário? Sim, daqui a três dias, você esqueceu? Olhou a folhinha: lua cheia. Seguia por atalhos, travessas, vielas, becos escuros, sempre se esgueirando... Fugia de que? Este quarto não possui janelas, vai ser difícil morar aqui! Não vou morar aqui, será o meu quarto de brinquedo. Ali ficará o computador, adiante a estante, a televisão... Construí na escola um sistema solar, vou trazer para pendurar no teto, não achava legal? É, legal, um quarto assim, assim... Queria sair, como faz todo mundo mas, não era todo mundo, não era tão grande assim. Volte para a sala. Você prometeu. O que prometi não importa.

A menina fez sinal para o menino que, ao retirar-se, levou o dedo indicador ao interruptor e apagou a luz. Bem que a vovó dizia que esta casa era assombrada, disse a menina a correr na frente.  

4 comentários:

  1. Não entendo porque essa insegurança para comentar teus textos, será a timidez diante de um rei? Oras bolas! Se entendo tudo depois da terceira leitura como da primeira vez, mesmo assim não encontro palavras para comentar, para dizer o que entendi. Tenho medo de estar falando como sobre uma coisa e tu quisestes dizer outra. Vejo que comenta com tanta facilidade o que eu escrevo, ha! Também, mal comparação essa minha.
    Só tenho a agradecer por tê-lo como meu leitor.

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  2. Nos desvãos da casa vazia, nossos medos e os assombros que a vida nos arma. Somos nós mesmos os nossos fantasmas, ou não?

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  3. Sant-Clair, tem rezão ao falar sobre seu texto, mas eu peguei carona e digo meu medo não passa de um fantasma adquirido quando era muito criticada ao tentar me expressar e sempre julgada com muita severidade.
    Este fantasmo residente em minha alma está com os dias contados e sua carta de liberdade assinada...
    Íris Pereira.

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  4. Um texto lindo e rico, Paulo!
    Tanto a refletir.
    Frustrações, decepções, medo são enormes fantasmas.
    Adorei.

    Chris Angelotti

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